quarta-feira, 29 de junho de 2016

Entre Linguiças e Maminhas:Ensaio sobre o lugar da travestilidade na cidade


Heloisa Lima de Carvalho[1]

                                                    RESUMO 
                                   
O presente trabalho tem por objetivo fazer a reflexão da intervenção urbana “Espaço para apedrejar”, registrando o meu “olhar” sobre o evento, como também de que forma o público  vê  a diversidade sexual e seus desdobramentos. A performance fez parte do Projeto Cidade Possível e chama a atenção para as relações de gênero. Sabemos que a sociedade é preconceituosa e simbolicamente apedrejam àqueles que fogem aos padrões ditos “normais”. Os performers deixam dúvidas quanto a identidade de gênero dos corpos que se travestem. A travestilidade circula pela via pública ocupando as ruas, praças e esquinas da cidade.

Palavras-chave: identidade de gênero, performance, cidade, corpo, travestilidade.


O projeto Cidade Possível intenciona compreender a cidade como “espaço de construção da vida social”, lugar de acontecimentos, da mobilização de pessoas e troca de experiências, construindo subjetividades para reinvenção da vida e exercício da cidadania, também inscrever a cidade como um lugar de possibilidades por onde transitam as diversidades. O objetivo desse ensaio é fazer a reflexão tomando como foco a intervenção urbana “Espaço para apedrejar” e através da observação perceber como os performers são vistos pelo público local, no que diz respeito a identidade de gênero. Para isso farei a interface entre cidade, corpo, gênero e sexualidade e as várias intercessões imbricadas nessa intervenção urbana, dando foco a transvestilidade
Para um melhor entendimento início a presente reflexão me reportando para a importância da cidade enquanto espaço democrático, heterogêneo, plural aberto as diferenças. Segundo Paula (2014) a cidade é o lugar do encontro, constituindo-se como espaço de cultura, cultura essa que se desenvolve em seus vários pontos de encontro:

Mercados, feiras, bares e restaurantes, museus e escolas, teatros e cinemas, estádios e campos de várzea, nas esquinas, nas exposições que aí acontecem e na sua própria exposição, na efervescência de suas ruas, na sua arquitetura civil, religiosa e política, popular e oficial, espontânea e planejada. (PAULA,2014, p.49).

Assim, essa diversidade é que faz da cidade um lugar ímpar, segundo o autor, pensar na
 homogeneidade da cidade, seria o mesmo que promover a morte desta, uma vez que está sempre em constante mutação, produzindo cultura e cidadania, refletindo a pluralidade humana. Dessa forma “as intervenções urbanas, por meio da arte e de outras manifestações culturais, se fazem necessárias e se tornam importantes para desenvolver na pessoa a capacidade de pensar a cidade como espaço produtor de lutas” (PAULA,2014, p.50), as intervenções urbanas tornam a cidade um laboratório aberto as investigações sociais, política e artística.
Com esse intuito nasce o evento “Espaço para apedrejar” que passo a descrever, consistiu de uma intervenção urbana performática em que um grupo de amigos, aproximadamente vinte pessoas, se encontraram e fizeram um churrasco de “maminha” e “linguiça” fazendo uso do espaço público. Foi um encontro despojado, alegre, com música, araras com várias roupas e os mais variados acessórios. As pessoas se travestiram atraindo os olhares dos passantes que questionavam suas identidades de gênero. Ao redor do evento estavam à disposição das pessoas, frutas, verduras e ovos para que metaforicamente os performers fossem “apedrejados”, caso houvesse motivação para isso. O objetivo do grupo foi chamar atenção coletando as impressões do público sobre as relações de gênero, colocando em xeque as identidades de gênero enquadradas nos padrões homem/mulher dos participantes da ação. O local escolhido foi a Praça Popular, no horário das 12:30 às 02:30 am do dia 03 de abril de 2016, madrugada de domingo. Salientando que nesse dia aconteceu o 100em1dia, movimento global ocorrido na cidade de Cuiabá como parte do projeto Cidade Possível, ou seja, aconteceram 100 intervenções em um dia em vários pontos da cidade.
A Praça Popular fica localizada no bairro do mesmo nome, nasceu da simplicidade e de acordo com o historiador Aníbal Alencastro (2015) o governo do Estado construiu o primeiro Conjunto Habitacional Popular de Cuiabá por estar próximo ao 44º Batalhão do Exército e à Escola Estadual Liceu Cuiabano. Hoje a Praça é um dos mais caros endereços da cidade, um verdadeiro” point” com diversos bares, restaurantes, entretenimentos, sendo um espaço elitizado, mas segundo o historiador desde cedo com vocação natural a vida noturna.
Para melhor entendimento da intervenção, procuro fazer a comparação entre o evento e o teatro interativo. Segundo Borba (2012) a linguagem estética é teatral e desenvolvida em função de problemas concretos, onde os artistas “ chegam algumas horas antes do evento, ocupando um determinado lugar na praça para elaborar a preparação para a festa teatral”(BORBA, 2012, p.18). Assim fizeram os participantes do grupo “Espaço para apedrejar”, delimitaram um lugar na praça marcando com fitas no chão, disponibilizando as frutas, legumes e ovos, instalação da churrasqueira para a confecção do churrasco, caixas térmicas com bebidas, roupas diversificadas e acessórios, uma bolsa e mala contendo figurinos variados e fantasias (perucas, colares, pulseiras, bolsas, sapatos, maquiagem), também tinha um colchão inflável, enfim os objetos de cena. Sem contar o aparelho de som, pois a música é um elemento essencial, além das vestes, para promoção das mais variadas performances, salientando que a praça é arborizada, possui iluminação, porém o local escolhido tinha pouca luz, levando em consideração que as travestis são pessoas de hábito noturno, gostam da penumbra, a escolha do espaço, nesse aspecto, favoreceu o evento para a criação das personagens.
            De acordo com a definição do Dicionário Caldas Aulete, performance significa “desempenho em uma exibição” ou “evento geralmente improvisado em que o(s) artista(s) se apresenta(m) por conta própria”,  podendo ter o sentido de execução de uma tarefa no aqui e no agora. A intervenção urbana “Espaço para apedrejar” suscitou uma performance de gênero. Para Buttler (2000) gênero e sexualidade se constituem materialmente através de atos performativos, essa autora afirma que gênero é uma construção social. Segundo Butler aparentemente se deduz uma identidade de gênero sexual ou étnica levando em conta as “marcas” biológicas e que muitas vezes é equivocada uma vez que “os corpos são significados pela cultura, e continuamente por ela alterados.
Bozon (1999) afirma que todas as experiências sexuais são construídas como scripts, ou seja, foram ao mesmo tempo aprendidos, codificados e inscritos na consciência. Os scripts podem ser “intrapsíquicos”, interpessoais e “culturais” que se manifestam no plano subjetivo da vida mental. Segundo esse autor “o pano de fundo simbólico do sexual, os cenários culturais só funcionam como objeto de interpretação (no sentido teatral) ”(BOZON,1999, p131). Assim as travestis seguem toda uma programação, um rito, cuja intenção é transformar-se o máximo possível, por isso se vestem de maneira exuberante, usam maquiagem, joias, cabelos compridos. Assim fizeram os performers para chamar a atenção, trocando de figurinos algumas vezes, retocando a maquiagem, se recriando. Tudo acontece na cidade, que segundo Geometti e Braga (2004) a cidade, muito mais que simples aglomerado de casas ou de indivíduos, é, por excelência, o lugar das trocas, do comércio, das inter-relações das pessoas e de lugares. A travestilidade ocupa esses espaços, são encontradas nas esquinas, avenidas e praças.
            Dessa forma o corpo tem importância fundamental, segundo Ponty (2006) “eu sou meu corpo”, o corpo é o que se mostra no aqui e agora, assim o corpo das personagens do “Espaço para apedrejar” se torna o palco dos sujeitos que se colocam como metáforas, abrindo alas para as relações intersubjetivas dos que rodeiam a praça. Acontece uma encenação, uma performance em plena praça pública, lembra o teatro mambembe, os participantes, um grupo artístico, delimitam o espaço, começam a se transvestirem “vão preparando cenografias, objetos de cena, pondo figurino, se maquiando e se compondo para o espetáculo junto ao público” (BORBA, 2012, p.130, 131). Ainda com Borba, “as pessoas chegam, saúdam e conversam com os integrantes do grupo que estão em processo de preparação”. A música começa a tocar, são os mais variados ritmos, o mais tocado é o Funk, o grupo dança, bebe, come, conversam com as pessoas que vão chegando  cumprimentando o grupo, pelo que percebi eram pessoas conhecidas que foram apoiar os amigos, apreciar a performance, tudo se dar como num espetáculo, algo interessante também foi observado, de vez em quando, a música parava de tocar e entrava uma mensagem denunciando os “crimes” praticados em Cuiabá contra as travestis, chamando a atenção para a violência sofrida nas ruas, uma vez que esses sujeitos são estigmatizados e marginalizados pela sociedade.
Butler (2003) afirma que um corpo que performa constitui a plasticidade e transitoriedade do sujeito, construindo sentido, expressa, atua e experimenta identidade e diferenças, produzindo abjeção. Ainda com Butler (2003), no processo de subjetivação, os termos que permitiriam às travestis serem reconhecidas como pertencentes à categoria de seres humanos são limitados. Apresentam-se, não como um sexo ou como um gênero, mas como apresentação a própria ambiguidade; nem como “sexo mesclado”, mas sim como corporificação e representação da contradição social. A travesti habita o limiar da distinção entre categorias, desafiando “noções fáceis de binarismo e pondo em questão as categorias de “fêmea” e “macho” tenta-se descobrir uma identidade desejada real, seja, masculina ou feminina, por trás da máscara da travesti. Para essa autora a travesti não é equivalente a um ou outro sexo, mas a figura que habita as fronteiras nas quais as oposições são perpetuamente decompostas, desorganizadas e subvertidas. A performance “Espaço para apedrejar” enquanto acontecimento quer chamar a atenção para a diversidade, dando foco, a travestilidade, dando visibilidade a esse público que está na cidade, ocupando as ruas, as praças, marginalizadas, a maioria se prostituindo.
Para Lazarato (2006) o acontecimento ao transfigurar as experimentações que havia preparado é que poderá fazer com que essas experimentações surjam como uma nova aparência.  Assim, o acontecimento pode promover mudanças significativas na vida da comunidade, pode abrir novas possibilidades de transformações possíveis. A cidade que acolhe é a mesma que apedreja. O preconceito e discriminação pelos LGBTS (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros), dentre eles destaco as travestis sofrem vários tipos de violência, tanto física, quanto psíquica.
Não poderia fazer essa reflexão sem envolver a relação entre a cidade e o corpo. Adélia Prado no poema A terceira via diz que "sem o corpo a alma não goza", o corpo independente do sexo é o fenômeno mais imediato, atesta a existência. Para embasar a importância do corpo, tomo como aporte Maurice Merleau-Ponty na obra Fenomenologia da Percepção, onde o filósofo diz que o corpo não é coisa, nem um obstáculo, mas é parte integrante da totalidade do ser humano. É afirmação da existência do ser, afirma Merleau-Ponty (1999. p.207,208)


meu corpo não é alguma coisa que eu tenho...eu não estou diante de meu corpo, estou em meu corpo, ou antes sou meu corpo... Não contemplamos apenas as relações entre os segmentos de nosso corpo e as correlações entre o corpo visual e o corpo tátil: nós mesmos somos aquele que mantém em conjunto esses braços e essas pernas, aquele que ao mesmo tempo os vê e os toca.
           
Dessa maneira, sintetizando o encontro entre o sujeito e o corpo, o ser humano define-se pelo corpo, significando que a subjetividade caminha paralelamente com os processos corporais. O corpo travesti, não é uma coisa, é gesto, linguagem, movimento, sensibilidade, desejo e dor.  A relação entre o corpo do cidadão e “esse outro corpo urbano” pode surgir uma outra forma de apreensão urbana e, consequentemente, de reflexão e de intervenção na cidade contemporânea” (Jacques e Brito, 2008). Para essas autoras, a cidade é lida pelo corpo, como conjunto de condições interativas onde o corpo expressa a síntese dessa interação descrevendo em sua corporeidade, o que passamos a chamar de corpografia urbana. Isso significa que as experiências urbanas se inscrevem nos corpos daqueles que experimentam, o que está vivendo a experiência e esse experimentar é correr riscos, é se pôr a prova. Assim, os performers do “Espaço para apedrejar” estão inseridos nesse projeto de movimentação corporal, metamorfoseando seus corpos, se expondo, se pondo à prova. Conforme Jacques e Brito (2008) os corpos que se travestem e dançam nos espaços urbanos realizam uma cartografia da coreografia, e assim cada corpo pode acumular diferentes corpografias como resultado das diferentes experiências. Ainda com essas autoras, os gestos e os movimentos do corpo que fez a experiência urbana já revelam sua corpografia, a cidade é lida pelo corpo, de forma interativa e se relacionam, involuntariamente, através das experiências urbanas. Para Benedetti (2005), a rua pode ser o único lugar onde a travesti se sinta bonita e desejada, além de ser um ambiente para se encontrar homens que não se identificam com o universo gay, os chamados "homens de verdade". É na esquina que as travestis têm pela primeira vez a sensação de pertencer a algum lugar.
Dessa forma o espetáculo da vida continua no “Espaço para apedrejar”, o público transita pela praça na madrugada, os bares e restaurantes em pleno movimento, música ao vivo, música eletrônica, jogos transmitidos pela TV a cabo, jogo de futebol socyet na quadra, pessoas lancham na barraca de cachorro quente também na praça. Percebi que algumas pessoas passavam se mostrando indiferentes” ao acontecimento, em outras causava um certo “espanto” sem entender bem de que se tratava, mas também despertou “interesse” quando se aproximavam sorrindo, fotografando e até mesmo se misturando ao grupo, participando do evento.
Diante do exposto faço alguns questionamentos: Será que as pessoas que se mostraram indiferentes não queriam enxergar? Será que fingiram não ver? Ou a diversidade sexual, naquele espaço da cidade, é vista com ”normalidade”? Por que não houve o apedrejamento simbólico das performers. Essas indagações poderiam ter várias hipóteses, talvez por ter sido realizada na Praça Popular, que de popular mesmo só tem o nome (grifos meus), por ser um local frequentado pela classe média alta, ou quem sabe também frequentado pelo público” travesti” como meio de realização das trocas, trocas marcadas pelas desigualdades sociais. 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENEDETTI, M. (2005). Toda feita: Corpo e gênero das travestis. Rio de Janeiro, RJ.
BOZON, Michel. Sociologia da sexualidade. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004. (Cap. 2

BORBA, Juliano. Teatro Comunitário e Dramaturgia do Espaço Público. N° 18 | março de 2012. 129. Urdimento. N° 18 | setembro de 2012
BUTLER, Judith. “Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. ” In: LOURO, Guacira L. (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
 _________ Judith Butler. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. (Cap. 1, pp. 17-6)
 Dicionário Machado Aulete disponível em http://www.aulete.com.br/Performance Acesso em 29.05.2016
GIOMETTI, Analúcia B. R e BRAGA, Roberto (orgs.). Pedagogia Cidadã: Cadernos de Formação: Ensino de Geografia. São Paulo: UNESP-PROPP, 2004 (páginas 105 a 120)
JACQUES, Paola Berentein e BRITO, Fabiana Dutra. Corpografias urbanas: Relações entre Corpo e Cidade. In LIMA, Evelyn Furquim Werneck (Org.). Espaço e teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.
LAZZARATO, Maurizio As revoluções do capitalismo I Maurizio Lazzarato; tradução de Leonora Corsini. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção (tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura). 2ª Ed.-  São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Midia News/Praça Popular disponível em http://midianews.com.br/cotidiano/praca-popular-de-conjunto-habitacional-a-point-da-capital/236591 Acesso em 24/05/2016
PAULA, Dalvit Greiner de. Intervenções Urbanas: a arte aponta para o futuro. Revista Confluências Culturais.ISSN 2316 V.3,n.2 (2014) Joinville-SC.
PRADO, Adélia. Poesia Reunida. 10ed. São Paulo: Siciliano, 2001.p.349-50


[1] Mestranda do Programa de Pós-Graduação dos Estudos de Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato grosso, Bacharel em Psicologia pelo Centro de Ensino Superior de Maceió-CESMAC e Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal de Alagoas-UFAL. 








terça-feira, 28 de junho de 2016

100em1dia: A CIDADE COMO ESPAÇO DE POSSIBILIDADES



Vera Lúcia X. dos Santos


Após o sonho, partiram em busca daquela cidade; não a encontraram, mas encontraram uns aos outros; decidiram construir uma cidade como a do sonho. (ítalo Calvino, As cidades invisíveis.)


Resumo:
As cidades contemporâneas são atravessadas por subjetividades que orientam para a reprodução e incorporação de valores da racionalidade mercadológica a qual homogeniza e padroniza a cidade, bem como, os modos de viver nela. Contrariando essas subjetividades capitalistas, encontramos movimentos que desafiam esse cenário, e colocam em pauta a reivindicação por outro projeto de sociedade e cidade. Foi com a proposta de pensar a cidade de Cuiabá-MT, que realizou-se o projeto 100Em1dia, com ações de arte e cidadania realizadas em vários pontos da cidade. As ações mobilizaram e sensibilizaram as pessoas para as problemáticas da cidade, bem como, produziram subjetividades para melhorar os modos de viver nela.

Palavras-chave: Subjetividade capitalista, cidade, 100em1dia,


Uma ordem social marcada pelo grande incentivo ao crescimento econômico reflete-se em todas as esferas da vida, seja política, social, cultural. Como resultado dessa forma de organização e produção temos uma sociedade marcada pelo consumo exacerbado pela e fragmentação espacial e social.
A cidade é o espaço onde se firma a subjetividade capitalística, que estrategicamente prioriza a multiplicação e acumulação continuada do capital, que para além da produção de mercadorias, fixa relações de exploração do trabalho, impõe regras e condições que regulam a vida cotidiana.
Tornou-se imprescindível, no panorama contemporâneo, pensar as cidades como espaços para além dos padrões de concentração econômica essencialmente centrada na supervalorização da subjetividade capitalística.
Segundo Guattari e Rolnik (1996) a Subjetividade capitalística caracteriza-se fundamentalmente pela adoção da máxima rentabilidade, da multiplicação do capital em detrimento da vida, nesse formato o homem atua sob certos princípios de valores que padronizam, articulam e subjugam, de modo a sustentar o sistema em vigor.
Em um movimento contrário a subjetividade capitalista, tem-se buscado outras formas de enxergar, experimentar e estar na cidade, bem como, criar outros modos de estar no mundo, sentir e agir para além do eixo capitalista.Dessa forma um grande desafio hoje está em conciliar a cidade desenvolvida/moderna e ao mesmo tempo promover a qualidade de vida das pessoas, aliando a isso a preocupação com manutenção do meio ambiente. Busca-se também assegurar a legitimação dos valores, experiências e modos de viver, reconfigurando assim os espaços e o cotidiano da cidade.
Pensar a vida enquanto potência e movimento, transpassada por processos que singularizam as subjetividades é a ação reativa e de enfrentamento ao processo de subjetivação capitalista. A singularização das subjetividades pode ser entendida como desejos de soltar as amarras dos valores que nos são impostos e naturalizados, mas com os quais não compartilhamos.


O que chamo de processos de singularização é algo que frustra esses mecanismos de interiorização dos valores capitalísticos, algo que pode conduzir à afirmação de valores num registro particular, independentemente das escalas de valor que nos cercam e espreitam por todos os lados. (Guattari & Rolnik, 1996, p. 47).


Processos de singularização promovem deslocamentos de ideias e novas reflexões através de estratégias criativas que possibilitam reiventar e recriar as relações, com o outro, consigo mesmo e com o mundo.  
Cada vez mais surgem movimentos que vão desde pequenas ações a grandes acontecimentos em diversos pontos do mundo, movimentos de resistência às subjetividades capitalísticas. Esses movimentos tentam problematizar e repensar o cenário contemporâneo, incorporando um outro modo de pensar, criar, sentir, enfim, abrindo espaço para o surgimento de possibilidades.

O possível é assim produção do novo. Abrir-se ao possível é acolher, tal como acontece quando nos apaixonamos por alguém, a emergência de uma descontinuidade de nossa experiência; e construir, a partir da nova sensibilidade que o encontro com o outro proporciona, uma nova relação, um novo agenciamento. (LAZZARATO, 2006, p 18)


Relacionar-se com a cidade e seus espaços de forma diferente, com olhares de estranhamento e afetividade, encantar-se. Sentir e experimentar, poeticamente, a cidade que na maior parte do tempo, acorrenta e sufoca.  A arte de rua, performances e tantos outros movimentos artísticos são formas de possibilitar um novo experimentar e sentir, bem como, promovem a cidade como espaço mais humanizado. Entre esses movimentos está 100em1dia, surgido em Bogotá e que já foi realizado em vários lugares do mundo.

O 100em1dia é um movimento mundial que acredita na potencialidade da iniciativa criativa e nas habilidades dos habitantes da cidade para melhorar os modos de viver nela. Surgiu em Bogotá em 2012 e já se espalhou pelo planeta: Kopenhagen, Toronto, Milão, Montreal, Santiago do Chile, Genebra, Cidade do Cabo entre outras. No Brasil, Rio de Janeiro e Blumenau. Cuiabá será a 3ª cidade brasileira e a 28ª cidade do mundo a realizar o 100em1dia[1].

Cuiabá, capital do Mato Grosso está localizada na região centro-oeste do país, com uma população estimada 580.489 de acordo com dados do IBGE (2015). A cidade é hoje um centro de negócios, uma vez que o estado do Mato Grosso é um dos maiores produtores agrícolas, como milho, feijão com destaque para produção de soja.
Seguindo a ideia de uma cidade possível de ser reinventada, o projeto 100em1dia realizado no dia 03 de abril de 2016 em Cuiabá. O projeto lançou o convite/desafio a todos que não se conformam com o que está posto, que desejam o novo com todas suas possibilidades de reiventar, criar, mostrar e que desejam, portanto, uma cidade melhor.
A proposta foi realizar cem ações em um dia, ações de arte e cidadania em distintos pontos e das mais diversas naturezas, tais como, caminhadas, jogos, limpeza de rios, recital de poesias, performances, teatro, entre outros. O importante foi participar em qualquer lugar, de qualquer ação.
Segundo reflexão de (AZEVEDO, 2013, p.08) É na força das intersecções entre várias artes: cênicas, artes do corpo, visuais, plásticas, performances, música, entre outras, que esses coletivos se apropriam da cidade e compartilham sensibilidades”. A realização do projeto foi um acontecimento de ação e reação, movimento, encontro e desencontros, mas, sobretudo de perceber e olhar a cidade através de outras angulações.
Assim, colocamos o 100em1dia não como apenas um evento, mas como um acontecimento para cidade, pois mobilizou e afetou as pessoas, além de ter pautado questões importantes e urgentes para a Cuiabá. O 100em1dia movimentou e problematizou a cidade com mais de cem ações desenvolvidas, algumas, inclusive, estão tendo desdobramentos. E muito embora, não tenha ressoado ao poder público, certamente sensibilizou muitas pessoas.
Dentre as inúmeras ações, participamos da CRIONÇAS de João Sebastião, a ação foi idealizada pelo GPPIN- Grupo de Pesquisa em Psicologia da infância do PPGE-Programa de Pós-graduação em Educação, em parceria com alunas do Programa de Pós-graduação Ecco- Estudos de Cultura Contemporânea, ambos da UFMT. A oficina realizada na Escola Municipal Silva Freire no Bairro Itapajé – Cuiabá e consistia na exposição da obra do autor para crianças, as quais faziam uma leitura/interpretação das pinturas para em seguida inventarem suas obras. A partir das interpretações das telas, elementos simbólicos da terra, tais como, onças, cajus, rios azuis, violas de cocho, peixes, “saltavam” das telas do artista.

Imagem 01: Nas telas de João Sebastião, sobressaem elementos representativos, como o pote, o caju, a onça.

Mulher com rosto de onça? Onça com rosto de mulher? Devanear e deixar a imaginação correr solta. Encantar pelas cores, formas e desenhos, mas também refletir a cidade a partir das telas.

Imagem 02: Formas híbridas de onça e mulher.


Imagem 03: Na pintura elementos culturais e naturais, como a viola de cocho,  onça e rios. 

O rio não é tão azul! Disse uma criança lembrando que os rios da cidade estão sujos e poluídos. Quando questionadas sobre o que é preciso para se ter uma cidade melhor, uma criança falou: SOMBRAS!  Cuiabá, como tantas outras cidades, segue o discurso de modernidade que prioriza as construções, em detrimento da natureza, a derrubada de árvores, consequentemente, faz diminuírem as “sombras” e aumentar o calor.
Também ouviu-se: ÁGUA! LUZ! As respostas dadas pelas crianças evidenciam os problemas sociais da cidade que as afetam diretamente. Nas cidades contemporâneas, moradores de bairros de periferia pobre, sofrem sem acesso aos serviços mais básicos e em Cuiabá não é diferente, como se percebe através das falas das crianças.
 As pinturas de João Sebastião destacam elementos culturais e naturais característicos de Cuiabá, o que proporcionou a apreciação das obras pelas crianças, mas também, a percepção de diferenças, mudanças e necessidades do contexto atual.
No segundo momento da oficina as crianças puderam pintar e criar suas próprias obras, fazendo da sala de aula um atelier, um espaço de experimentação, diversão, arte e possibilidades...

Imagem 04: Crianças participando da ação “Crionças”
Fonte: Silvia Davies

A dinâmica das cidades exigem adaptação e readaptação permanentes às normatizações, as ações do 100em1dia, ofereceram um exercício de ruptura dessas amarras. O projeto mobilizou pessoas e esforços na criação de experiências que colocam as pessoas em contato com o outro e com a cidade, compartilhando ideias e subjetividades que potencializam um novo contorno em relação aos modos de estar e viver a cidade. Corrobora essa ideia a reflexão de Mongin (2009, p.33) quando infere que “A experiência urbana se inscreve em um lugar que torna possíveis, práticas, movimentos, ações, pensamentos, danças, cantos, sonhos”.
O desafio de promover uma cidade melhor ainda está posto, é um desafio diário e imperativo.  Mas, para além dos conflitos e problemáticas que se apresentam na cidade contemporânea, a cidade também é o espaço das possibilidades. Possibilidades de mudar, melhorar e criar novas situações.
É preciso lembrar que a cidade é mais que o conjunto de construções, ruas, avenidas e automóveis, negócios, e não apenas se resumir a um território material e físico, pois ela é também mental, imaginário e relações, Mongin (2009). Ela é, sobretudo, feita por quem mora nela, de forma que são as pessoas que podem transformar e transformar-se, e buscar possibilidades de uma vida melhor na sua cidade.


REFERÊNCIAS:

AZEVEDO, Maria Thereza. Passeio de sombrinhas: poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade. Disponível em: publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/magistro/article/view/2181/1007Acesso: 23/05/2016.


GUATTARI, Félix, ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias dos desejos. Petropólis: Vozes, 1996.

LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

MONGIN, Olivier. A condição urbana: a cidade na era da globalização. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

Sites consultados: