quarta-feira, 20 de julho de 2016

AS “CRIONÇAS” DE JOÃO SEBASTIÃO DA COSTA

                                                                                                 Anna Cristina Garcia e Silva[1]

A cidade de Cuiabá vive 100 em 1 Dia.


“O que é uma cidade? Dentre uma miríade de respostas possíveis, poderíamos dizer que uma cidade é um conjunto de tempos criados coletivamente, num espaço que se desdobra gradativamente; mesclando a memória de um marco zero ecossistêmico, político e econômico, com o sonho de futuros, através do agenciamento dos movimentos de seu desejo em constante devir”. (DUARTE, 2006, p. 113).

100 em 1 Dia é um movimento que foi pensado para que as pessoas percebessem e se relacionassem com a cidade em que vivem com um outro olhar, de tal maneira que pudessem interagir com a cidade através de ações comunitárias em um único dia.
As ações englobam: arte, ações sociais, eventos de lazer, entretenimento e principalmente ações que propiciem melhorias urbanas e a possibilidade de que surjam políticas públicas voltadas para a qualidade de vida e uma melhor interação e percepção nessa relação homem/cidade.
Este projeto que podemos chamar de festival da cidadania, nasceu em Bogotá em 2012 repensando a cidade com reflexões nos mais diversos segmentos. E foi a partir do sucesso do projeto 100 em 1 Dia no que diz respeito a apropriação do espaço urbano que gerou uma rede global onde ações coletivas são realizadas em diversos lugares do mundo e assim compartilhados servindo de inspiração ou adequação às necessidades local. Segundo “Jean-Jacques Rousseau na obra: O contrato Social:

“A cidade. Os modernos quase que completamente esqueceram o verdadeiro sentido desta palavra: a maior parte confunde as construções materiais de uma cidade com a própria cidade e o habitante da cidade com um cidadão. Eles não sabem que as casas constituem a parte material, mas que a verdadeira cidade é formada por cidadãos.”

A velocidade com que as coisas acontecem na cidade exige que projetos como o 100 em 1 Dia aconteça favorecendo as relações sociais solidárias e que onde ocorra conflitos, estes sejam, solucionados de maneira que o cidadão possa viver compartilhando e desfrutando de uma cidade sustentável onde cultura e lazer favorecem o processo civilizatório tão inerente à cidade e ao cidadão.
A cidade é um grande centro industrial e comercial. Foi através do desenvolvimento e do aumento da produção na agricultura que gerou a necessidade de estocagem de excedentes. É a partir deste momento que a sociedade torna-se complexa e acontece o surgimento das classes sociais baseadas na divisão do trabalho. Ocorre um grande equívoco quando a cidade é vista somente como um lugar onde se concentram riquezas, poder político e religioso. A cidade vai além, a cidade é o espaço urbano onde existe o cidadão que na maioria das vezes é esquecido pelos governantes. A criação e execução de projetos como o 100 em 1 Dia surge para que ocorra a intervenção no espaço urbano e que as pessoas que nela vivem sintam a sua cidade e percebam que é possível ter, viver e conviver em um local realizando projetos que reconfigurem os espaços até então esquecidos e o cotidiano da cidade, na busca de uma cidade voltada para um bem maior que é a qualidade de vida dos que ali estão.
Jamais poderíamos deixar de fora do Movimento Cidade Possível o inquieto, autêntico, irreverente e saudoso, João Sebastião, afinal, foi dele a iniciativa de chamar a atenção de toda a sociedade cuiabana ao ver na mídia uma foto da estátua da personagem folclórica de Cuiabá, Maria Taquara esculpida pelo artista plástico Aroldo Tenuta[2]. Localizada no centro da capital em local estratégico, com seu pedestal rodeado de sacos com lixo. Aquela cena o deixou triste e sentiu que como cidadão e artista alguma intervenção precisava ser feita.
Segundo Maria Angélica Melendí:

"O que hoje chamamos de intervenção urbana envolve um pouco da intensa energia comunitária que floresceu nos anos de chumbo. Os trabalhos dos artistas contemporâneos, porém, buscam uma religação afetiva com os espaços degradados ou abandonados da cidade, com o que foi expulso ou esquecido na afirmação dos novos centros. Por meio do uso de práticas que se confundem com as da sinalização urbana, da publicidade popular, dos movimentos de massa ou das tarefas cotidianas, esses artistas pretendem abrir na paisagem pequenas trilhas que permitam escoar e dissolver o insuportável peso de um presente cada vez mais opaco e complexo."

Pronto, estava criado o projeto “transmitologismo” termo criado por ele, de trânsito e mito. O artista foi visto em vários locais e pontos turísticos de Cuiabá com uma trouxa de roupa na cabeça.
Neste momento a história de Maria Taquara é trazida por João Sebastião instigando a curiosidade dos jovens e remexendo na memória dos cuiabanos mais velhos com o objetivo de chamar atenção do Poder Público para o descaso em relação à nossa história. João Sebastião costumava dizer que a frase do Historiador Rubens de Mendonça[3], “Tudo o que morre em Cuiabá, morre para sempre.” era perfeita para retratar a situação. O Transmitologismo foi para as redes sociais e obteve a adesão de 58 artistas de diversas áreas.
Segundo Huizinga 2014, p.217

“Há fenômenos que a geração mais nova considera parte do “passado” e que para os mais velhos continuam fazendo parte de “nosso tempo”, não só porque os mais velhos ainda recordam pessoalmente esses fenômenos, mas, sobretudo porque eles ainda fazem parte de sua cultura. Esta diferença quanto ao sentido do tempo depende menos da geração a que se pertence do que do conhecimento que se possuí das coisas antigas ou novas”.

É perceptível que em sua grande maioria as intervenções são efêmeras. Assim como uma nota musical, as intervenções duram o tempo da condução do ritmo cotidiano para um ritmo poético repleto de devaneios que provocam questionamentos. Agora, afirmar por quanto tempo tudo o que foi gerado em quem o presenciou pode durar não poderemos dizer jamais com exatidão.
Wagner Barja nos diz o seguinte:

"Cabe observar que, atualmente nas artes visuais, a linguagem da intervenção urbana precipita-se num espaço ampliado de reflexão para o pensamento contemporâneo. Importante para o livre crescimento das artes, a linguagem das intervenções instala-se como instrumento crítico e investigativo para elaboração de valores e identidades das sociedades. Aparece como uma alternativa aos circuitos oficiais, capaz de proporcionar o acesso direto e de promover um corpo-a-corpo da obra de arte com o público, independente de mercados consumidores ou de complexas e burocratizantes instituições culturais." 

 “As crionças de João Sebastião”, que foi idealizada e planejada pelo GPPIN – Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infância que pertence ao PPGE – Programa de Pós Graduação em Educação da UFMT e pela Casa de Cultura Silva Freire que em pareceria com o movimento Cidade Possível, idealizado pela professora Dr.ª Maria Thereza Azevedo[4], participaram do evento 100 em 1 Dia realizado em Cuiabá. Para o sucesso dessa parceria muitas reuniões foram realizadas com a participação de discentes do Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCO.

Figura 01: Grupo reunido para o planejamento de atividades. Local: Sala do GPPIN, UFMT, Cuiabá, 2016.
Foto: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva

A ação envolveria as obras do artista sendo apresentada às crianças para que fizessem uma releitura. Alguns protocolos precisaram ser seguidos, como por exemplo: contato com a escola; pedido de autorização de imagens; encontros com o grupo e decisão sobre qual metodologia utilizar. Após definição de quais imagens/obras do artista seriam utilizadas para expor às crianças, foi à vez de providenciar: tesoura, giz de cera, cola papéis específicos e coloridos, recortados em diversas formas em quantidade suficiente para que todas as crianças convidadas pudessem participar e liberar a imaginação através de desenhos e esculturas que também lembrassem uma onça.

Figura 02: Grupo reunido para a organização dos materiais e planejamento de atividades. Local: Sala do GPPIN, UFMT, Cuiabá, 2016.
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva

O pensamento de Derdyk, 2004, p.7, vinha de encontro ao que pretendíamos com a ação.

“O desenho do adulto e o desenho da criança não são produções estanques. Ambos participam do patrimônio humano de aquisição de conhecimento, complementando-se, remetendo-se. Surge daí muitos pontos de reflexão, de convergência e antagonismo, no confronto entre produção gráfica infantil e o universo cultural do adulto”.

A ação: “As crionças de João Sebastião” que foi realizada na Escola Municipal de Educação Básica Silva Freire, localizada na Avenida Bakaeri, no bairro Jardim Itapajé, na região do Coxipó. Por intermédio do projeto 100 em 1 Dia e do Movimento Cidade Possível realizado em Cuiabá no dia três de abril de 2016, esta ação ocorreu simultaneamente à outras intervenções. Contamos ainda com a presença e participação de Alexandra Costa Aguiar Barthalo e Érica Costa Aguiar, filhas do artista homenageado, João Sebastião F. da Costa, falecido em 28/02/2016.
João Sebastião foi desenhista, pintor, escultor, figurinista e professor, nascido na região do Coxipó da Ponte, nas proximidades do São Gonçalo Beira Rio. As telas e esculturas por ele produzidas estão repletas de elementos e símbolos, mitos e lendas, que variam desde: imagens religiosas, canoa sobre as águas, caju, viola de cocho, potes de cerâmica, porém em todos os trabalhos a onça pintada estava presente, às vezes de forma clara e explícita, outras necessitavam de um olhar mais atento para descobrir algo da onça. Tudo que era produzido por ele retratava a cultura popular cuiabana por meio de memórias que fizeram parte de uma infância feliz de um menino saudável que corria e brincava fazendo muitas peripécias.
Certa vez estávamos no São Gonçalo Beira Rio, na casa de Dona Domingas e ele fez questão de me levar até o fundo do quintal e disse:

 “Anna, essa Figueira tem mais de 130 anos, fui criado livre correndo por aqui, tudo era diferente, na minha época de moleque jogávamos bola na rua sem preocupação, subíamos em árvores e saboreávamos deliciosas frutas. Mas essa aqui, a “Figueira Mãe” era a minha preferida, gostava de subir e ficar quietinho lá em cima com meu caderno e a imaginação vagava, vagava e depois estavam concretizados em meus desenhos. Abraçou aquela magnífica e imponente árvore e agradeceu em voz alta a mãe natureza”.[5]

Figura 03: Visita realizada na Comunidade São Gonçalo Beiro Rio, na cidade de Cuiabá-MT em 2015.
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva

O pensamento de Ostrower, 1978. De que: “O processo vivencial está diretamente ligado ao processo criativo”. Define o nosso artista. A narração desse fato evidencia com total clareza que ser criança é não fazer parte dessa inércia que a vida adulta muitas vezes nos impõe. A criança está em constante movimento. Nada passa despercebido e a criança com olhar aguçado avaliam e observam tudo que acontece ao seu redor e agem como conquistadores e descobridores, tudo é novidade e encantamento.
Para Derdyk (2004, p.11) “A vivência é a fonte do crescimento, o alicerce da construção de nossa identidade. Fornece um leque de repertório, amplia a possibilidade expressiva”.
 Dessa forma, o objetivo da ação “As Crionças de João Sebastião” foi realizar uma intervenção em uma linda manhã de domingo, apresentando a história da vida e obra do artista para as crianças do terceiro ano do ensino fundamental através de atividades lúdicas envolvendo desenho, pintura, colagem e confecção de esculturas.
Foi explicado para as crianças que receberiam materiais e que as filhas do artista iriam falar sobre ele para que pudessem conhecer um pouco um pouco sobre o artista que criou telas incríveis brincando em colocar a onça pintada em tudo elas falaram para as crianças como o pai gostava de comer caju, o jeito brincalhão de viver, e que era muito disciplinado, tinha horário para tudo e ficava todo orgulhoso quando dizia para as pessoas que aos 12 anos já possuía um atelier.
A importância de se conhecer os artistas e os processos artísticos de construção das obras é enfatizada por Maria Heloísa C. de T. Ferraz (2009) ao afirmar que:  

Conhecer os artistas, ver como trabalham, observar suas obras é outro passo para aprender a pensar e apreciar a arte. A observação atenta do trabalho artístico e sua inserção na sociedade, a sua identificação, a percepção da linguagem e dos significados que contém, são conhecimentos específicos do campo artístico e que aprimoram tanto o processo de produção como a percepção estética. (FERRAZ, 2009, p. 29)


Figura 04: Apresentação de imagens das obras do artista. Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva

Sílvia Mara Davies[6], que é uma grande pesquisadora das obras do João Sebastião, mostrou alguns trabalhos do artista e como que ele fazia para que tudo virasse ou nos remetesse a onça, em seguida todas as crianças usaram a imaginação que lhes é pertinente e através dos recortes que receberam criaram objetos e desenhos onde a onça também estava presente. Deixando claro para elas que por meio da diversão seriam os artistas “crionças” daquela manhã.
Figura 05: As crianças soltando a imaginação.
Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016.
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva

Figura 06: As crianças soltando a imaginação.
Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016.
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva

O resultado desta ação foi surpreendente, as produções artísticas foram muito criativas, o jogo de cores e formas foi concretizado conforme a proposta da atividade. Nesta perspectiva, cabe ressaltar o pensamento de Francastel: “As etapas de representação do espaço na criança trazem notáveis esclarecimentos sobre as diferentes formas que podem tomar o desenho e a representação figurada no mundo”.

Figura 07: Finalização e exposição das obras de artes
Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016.
 
Fonte: Elaborada pela autora Silvia Mara Davies

Durante as reuniões com o GPPIN, ficou acertado que as esculturas e desenhos confeccionados durante a atividade ficariam expostos na escola para a comunidade escolar. Porém, para surpresa de todos os adultos ali presentes as crianças quiseram levar para casa. Essa surpreendente atitude das “crionças” nos mostra a relação que se dá entre a obra e o artista. Edith Derdyk (2004) afirma que “O desenho é a manifestação de uma necessidade vital da criança: agir sobre o mundo que a cerca, intercambiar, comunicar.” (Derdyk, 2004, p. 51).
Figura 08: Filhas e neto do artista homenageado.
Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016.
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva

Figura 09: Escultura confeccionada na atividade artística
Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016.
 
Fonte: Elaborada pela autora Silvia Mara Davies


Figura 10: Escultura confeccionada na atividade artística
Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016.
 
Fonte: Elaborada pela autora Silvia Mara Davies


O movimento Cidade Possível, e as ações por ele produzidas devem ser repetidas sempre que possível. A globalização promove a fragmentação dos espaços, da economia e da vida, a cidade já não pertence de forma igualitária a todos os cidadãos, vivemos em um verdadeiro burburinho urbano onde convivemos com diversas representações culturais que nos fazem pensar que o desenho se manifesta em diversas atividades. E com certeza essa manhã de domingo fez muita diferença para as “crionças” e a comunidade local ao serem apresentadas as obras de João Sebastião e poderem liberar a imaginação através de formas, desenhos e cores.







REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA


BARJA, Wagner.  Disponível em: <http://www.intervencaourbana.org/

DERDIKY, Edithy. Formas de pensar o desenho: desenvolvimento do grafismo infantil. 3ª ed. São Paulo: Scipione, 2004.

DUARTE, E. Desejo de cidade – múltiplos tempos, das múltiplas cidades, de uma mesma cidade. In: PRYSTON, A. (Org). Imagens da cidade: Espaços urbanos na comunicação e cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2006

FERRAZ, Maria Heloísa C. de T. Maria F. de Rezende e Fusari. Metodologia do ensino da arte. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2009.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. 8ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2014

MELENDI, María Angélica. Disponível em: <http://www.intervencaourbana.org/

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato Social. 1ª Ed. São Paulo: Martin Claret, 2013.








[1] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea - ECCO/UFMT e Docente da Escola Est. EM. Prof.ª Adalgisa de Barros - SEDUC/MT, e-mail: acgs1972@gmail.com
[2] Aroldo Civis Tenuta, artista plástico cuiabano, já falecido. Têm obras espalhadas por todo Brasil e Exterior.
[3] Rubens de Mendonça, Cuiabano, poeta, historiador e jornalista. Falecido em 1983.
[4] Professora Doutora da disciplina: Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas III, do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea - ECCO da UFMT - Campus Cuiabá.
[5] João Sebastião F. da Costa, artista plástico Cuiabano. Falecido em 28 de fevereiro de 2016.
[6]  Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea e docente do Instituto Federal de Mato Grosso, E-mail: silvia.davies@srs.ifmt.edu.br    

sexta-feira, 15 de julho de 2016

A crise ecológica humana e a resposta do Movimento 100em1dia

Juliana Capilé

Cuiabá - Mato Grosso


O momento atual da condição humana no planeta aponta para uma crise sem precedentes. Não apenas o estilo de vida adotado pelos seres humanos está sendo ameaçado, como tudo indica que é esse estilo de vida o principal culpado desta crise. A maneira de viver no planeta é o que está em questão: nossas escolhas calcadas no conforto e na exploração levaram o planeta para uma crise ecológica de vários níveis. Quando Félix Guatari relaciona três ecologias que formam seu conceito de “ecosofia”, sendo; social, ambiental e subjetividade humana (2009), ele aponta nosso olhar para o ser humano, principal agente deste caos, como parte deste sistema ecológico que se encontra em desequilíbrio. O ser humano é o principal problema; ele adoece o planeta porque está doente.
As redes de parentesco tendem a se reduzir ao mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia, a vida conjugal e familiar se encontra frequentemente "ossificada" por uma espécie de padronização dos comportamentos, as relações de vizinhança estão geralmente reduzidas a sua mais pobre expressão... É a relação da subjetividade com sua exterioridade - seja ela social, animal, vegetal, cósmica — que se encontra assim comprometida numa espécie de movimento geral de implosão e infantilização regressiva. A alteridade tende a perder toda a aspereza. O turismo, por exemplo, se resume quase sempre a uma viagem sem sair do lugar, no seio das mesmas redundâncias de imagens e de comportamento.” (GUATTARI, 2001,p.7)

Pensar nessa subjetividade é, portanto, fundamental para observar a questão ecológica do tempo atual. Como recurso para refletir sobre o estilo de vida adotado pelos seres humanos até agora, Michel Serres (1990) na sua obra Contrato Natural, sugere que devemos ser anticartesianos e compreender de fato que não somos os senhores da natureza. A posição de Serres conta com a vontade humana de mudar atitudes em nome de um bem comum, fazendo referência à própria sobrevivência da espécie humana no contexto global, mas não apenas a sobrevivência física, como também a subjetiva, no que se refere ao mundo sensível. Neste ponto a questão mundial/global, que até então se preocupou com as variações climáticas e animais em extinção, se volta para o indivíduo e sua percepção; o sujeito como deflagrador de um processo social e político, que não só tem o humano como promovedor da crise ecológica, como também a principal vítima de toda a crise, e a cidade como lugar potencializador; tanto da crise quanto da necessidade de soluções para vencer a crise. 

"Pedras do Caminho"

Entender que uma cidade é formada por indivíduos que vivem nela pode parecer óbvio como construção de ideia, mas é uma equação que se perde com facilidade nos trajetos urbanos. Prontamente entendemos que a cidade é formada por rotinas e percursos repetidos cotidianamente, com fluxos cíclicos de movimentos que possuem hora para começar e para terminar, criando uma relação mais próxima de uma execução de funções ou cumprimento de tarefas do que um espaço de convívio social e político entre pessoas que vivem em um mesmo lugar.  É nítido que desde a arquitetura das cidades até seu ritmo cotidiano serve a uma lógica do capital, o que faz com que a cidade seja o local onde “ganhamos o nosso dinheiro”, onde trabalhamos e nos aprimoramos para sermos profissionais melhores, e não um lugar para viver nosso potencial humano. Nas palavras de Pedro Jacobi (1986), devemos reconquistar nosso “direito à cidade”, que foi construída como um “produto de consumo” e por isso, longe do alcance de quem não tem poder aquisitivo.
Dentre todos os pontos de observação do tema da ecologia, relaciono a política para observar a cidade por entender que o indivíduo social e a relação intersubjetiva são o problema e a solução. Considerando que a formação da comunidade política se baseia no “encontro discordante das percepções individuais”(Rancière,2009), a política está fundada sobre o mundo sensível e deve incentivar a multiplicidade das manifestações dentro da comunidade, se tiver pretensões de ser democrático de fato. Em uma comunidade as percepções individuais estão em constante tensão e formam dois mundos distintos: o mundo partilhado pela maioria, que está expresso pelas narrativas da grande mídia e serve ao capitalismo, e o mundo invisível dos “homens lentos”(Milton Santos, 2006), que se encontra inserido dentro do mundo comum, mas não é nem retratado e nem  ouvido. A política, segundo Rancière, é feita da relação entre esses “mundos fraturados” que se baseia na percepção de cada indivíduo e sua noção de mundo. Hanna Arent (1987) observa que os traços de visibilidade dos indivíduos no espaço público assegura-lhes o pertencimento a um mesmo espaço social, corroborando a necessidade de partilha deste espaço e seu constante dissenso e consenso para uma atividade política satisfatória.
"Ocupação do viaduto da UFMT com balanços"
 É sob essa perspectiva que observo as ações desenvolvidas durante a ação global 100em1Dia, realizado no dia 3 de abril de 2016 na cidade de Cuiabá, como uma atividade política que traz uma resposta à crise ecológica. Desde o primeiro minuto do dia 3 até seu final, os indivíduos da cidade realizaram ações de cidadania e arte relacionadas com afetividade, cuidado, beleza, sociabilidade, meio ambiente, urgências, cultura, programando e executando essas ações durante todo o dia, transmitidas ao vivo na rádio local Assembleia. Neste dia a cidade experimentou uma quebra na rotina calcada na subjetividade capitalística e praticou política se utilizando da relação entre “mundos fraturados”. As ações contavam com voluntários para acontecerem, o que provocava a interrelação entre pessoas de diferentes percepções individuais, com um objetivo em comum.
"Reviver São Gonçalo"
Os diferentes lugares ocupados por cada indivíduo social que compartilha um ambiente comum que é uma cidade e que configura na constante tensão entre o dissenso e o consenso não resulta em uma comunicação interativa imediata, ou seja, não estamos trocando informações e experiências com outros indivíduos da cidade somente porque compartilhamos o mesmo espaço-tempo. Trocamos informações e experiências quando, por algum motivo, somos impelidos a nos confrontar/relacionar com o outro; do contrário estamos munidos de artifícios e mecanismos de defesa que preserva nossa existência e nosso modo de ver o mundo ao mesmo tempo em que nos mantém afastados da realidade da qual não queremos compartilhar. Quando um indivíduo se propõe a recuperar o pátio de um hospital psiquiátrico e recruta voluntários para colaborar, ou decide pendurar balanços embaixo de um viaduto, estamos diante de uma experiência que desafia a lógica capitalística que move a cidade e promove uma interação entre os indivíduos. Habermas (2002) cita três formas, bastante próximas das três ecosofias de Guattari, de “abalar o entendimento entre os sujeitos racionais”, são eles: a experiência externa do mundo das coisas e acontecimentos; a experiência intrasubjetiva com nossa própria natureza interior, do nosso corpo, necessidades e sentimentos; e a experiência intersubjetiva do mundo solidário, que é a relação entre sujeitos. Com isso Guattari e Habermas sugerem que  partilhar o espaço comum buscando dissolver os muros invisíveis que apartam os indivíduos é parte fundamental do processo de renovação de velhos conceitos de mundo. As ações do 100em1DiaCuiabá abriram um espaço para refletir o modo de viver na cidade utilizando-se dessas formas, ao mesmo tempo em que identifica a transformação necessária em nível social, partindo da  vontade humana de mudar atitudes em nome de um bem comum, como pensava Serres. Desta forma, eventos como o 100em1DiaCuiabá criam “comunidades de partilha” (Rancière,2000) pois promovem espaços de experimentação e de tentativas de fazer com que realidades antes não imaginadas ou desconsideradas passem a serem percebidas, sem ser incorporadas ao ritmo “normal” da cidade. O fato das ações acontecerem somente por um dia reforça essa característica; um dia em que as pessoas passearam pelas ruas de sombrinha; um dia de recolher o lixo deixado nas margens de um rio; um dia de se maquiar e se vestir extravagantemente durante a madrugada em uma praça pública. Durante esse dia, abre-se uma fresta entre os mundos e podemos ver o lado “invisível” e “lento” da cidade, criando o momento de reconfigurar o que consideramos “comum”. Nos demais dias que se segue, a cidade não será a mesma para a sensibilidade de quem participou das ações, e nem para quem viu acontecer, porque sua percepção individual do espaço-tempo compartilhado estará alterada.  Mesmo que por apenas um dia, a ação política já se estabeleceu, pois quando o indivíduo pertencente a uma determinada classe social e nível de instrução, que realiza um determinado trajeto diário pela cidade se permite compartilhar do espaço de um viaduto com os moradores de rua, estabelece-se uma fratura entre esses mundos. É a experiência sensorial que se interpõe à experiência racional, pois os indivíduos não estão debatendo suas realidades e sim, vivenciando outro ritmo na cidade. O que torna essa experiência potente é o encontro entre as percepções individuais que forma ou ativa uma comunidade política.
"Flash Mob Mercado do Porto"

A crise ecológica mundial está apenas em seus primeiros estágios, podemos perceber isso; mas, identificar a crise humana como centro gerador de toda questão global desloca a responsabilidade para o indivíduo e sua forma de pensar em si e de aceitar o outro. Buscar melhorar o ser humano que somos é parte da análise do problema e o movimento mundial 100em1Dia oferece uma resposta na busca de soluções pois se caracteriza como uma convocação à ação e possibilita ao indivíduo da cidade canalizar sua necessidade de mudança, se assumindo como cidadão e portanto, como transformador e agente do lugar que habita. A mensagem de um movimento como esse é que a solução está em nossas mãos.
"100 balões para Cuiabá"


BIBLIOGRAFIA

ARENT,Hanna. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
CASTRO, Josué de. Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 10. ed. Rio de Janeiro: Antares, 1983.
GUATTARI, Felix. As três ecologias. 20ª ed. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 2009.
HABERMAS, J. (2002). Ações, atos de fala, interações mediadas pela linguagem e mundo da vida. In:______. Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro
JACOBI, Pedro. A Cidade e os Cidadãos. Lua Nova:Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 4, vol. 02, mar. 1986.
MARQUES, Ângela. Comunicação, estética e política: a partilha do sensível promovida pelo dissenso, pela resistência e pela comunidade. Revista Galáxia, São Paulo, n. 22, p. 25-39, dez. 2011.
RANCIÈRE, Jacques. Política da arte. Tradução Mônica Costa Netto. Urdimento, Santa Catarina - Florianópolis (UDESC), v. 1, n. 15, p. 45-59. 2010.
_____________. A Partilha do Sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 2009.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
SERRES, Michel. Contrato Natural. Instituto Piaget: Lisboa, 1990.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Peixes e aquários: passeio errante no Mercado do Porto em Cuiabá




André Francisco Sontak de Morais


Performance Se os Tubarões fossem Homens

Foto: Jan Moura



O ensaio apresentado é resultado da disciplina de Estudos de Cultura I: Concepções e abordagens, ministrada pela professora Doutora Maria Thereza de Oliveira Azevedo, tratando da experiência vivenciada pelo 100em1dia¹, projeto que estimulou a realização de ações que, ligadas ao fazer artístico e social, ocuparam a cidade de Cuiabá no dia 3 de abril 2016.
O projeto 100em1dia é um movimento mundial, desenhado em Cuiabá pelo Cidade Possível², buscando repensar os modos de experiência urbana, tendo como força motriz a capacidade de se reconectar com a cidade através de iniciativas criativas. O projeto contou com diversas ações, dentre elas destaco a performance realizada no espaço do Mercado do Porto, “Se os Tubarões fossem Homens”.
A performance foi realizada pelo ator e artista plástico Yuri Lima Cabral, integrante do Teatro Faces³ da cidade de Primavera do Leste. O artista define o seu trabalho na programação do 100em1dia Cuiabá como performance, inspirada no texto “Se os Tubarões fossem Homens”, do encenador e poeta alemão Bertold Brecht. O trabalho consistiu na caminhada de um homem vestido de preto pelos espaços do Mercado do Porto carregando um peixe dentro de um aquário, com balões vermelhos amarrados na perna. O homem atrai a atenção dos feirantes pelos elementos extra cotidianos que carrega na caracterização e movimentação física.
Quando se estabelece a comunicação entre o emissor e o receptor na performance, a primeira experiência vivenciada é estranheza de um homem vestido de preto, no sol escaldante de Cuiabá, avançando lentamente rumo ao âmago da paisagem acelerada do Mercado do Porto. Entre as mãos, um aquário, decorado com pedras e algas sintéticas. Entre frutas, carnes e ervas, um peixe nadando tranquilo, indiferente ao mar de estímulos que o circunda. Assim, o homem leva o seu peixe para um passeio no mercado.
O passeio realizado pelo homem com o seu peixe, na manipulação do próprio corpo como gerador de sentidos, carrega a crítica feita por Brecht no texto “Se os Tubarões fossem Homens” sobre a civilização. Assim, a performance traz em sua estrutura questionamentos sobre a vida, neste trabalho em específico, questionamentos sobre a relação da experiência urbana, da própria vivência da cidade não praticada pelo peixe, que se limita ao enclausuramento do seu aquário.
Glusberg (2013) afirma que o performer se utiliza do corpo como sujeito e força motriz do ritual. Na manipulação do discurso do corpo, o performer apresenta signos, que são passivos de leitura pelo receptor, questionando e sugerindo modificações na realidade operativa imposta. Assim “as performances realizam uma crítica às situações de vida: a impostura dos dramas convencionais, o jogo de espelhos que envolve nossas atitudes e sobretudo a natureza estereotipada de nossos hábitos e ações” (GLUSBERG, 2013 p.72).
O contraste da lentidão do homem com os movimentos rápidos do peixe nos sugere disparidade de discursos. Mas a impossibilidade de livre arbítrio delimitado pelo homem através do aquário conduz o espectador ao estado de empatia, na tentativa de compreensão do signo que o peixe constrói na carga semiótica da performance.
O peixe se limita a um percurso já delineado por seu aquário, sem nenhuma opção de mudança, desvio ou retorno. O percurso programado se desfaz pelo próprio peixe, numa cena de contemplação de uma laranja. A cena que dura segundos se perpetua no imaginário do espectador pela fala de uma mulher, que surpresa sussurra que o peixe está olhando com admiração uma laranja. Neste momento é possível ver que o jogo proposto pelo performer foi identificado e também jogado.
Cristiane Esteves (2016), diretora do grupo OPOVOEMPÉ, menciona no IV Simpósio Internacional de Reflexões Cênicas Contemporâneas – Arte e Cidade sobre os três níveis de público geralmente presentes nos trabalhos que o grupo realiza: o primeiro nível de público é definido pela não percepção sobre o que está sendo proposto; o segundo nível de público estranha, mas não consegue saber o que está acontecendo; o terceiro nível de público percebe o jogo proposto e entra para jogar.
Quando o espectador troca de lugar com o peixe, reconhecendo o aquário como limitação, a performance encontra sua verdadeira força. Se colocar no lugar do peixe é entender a limitação e buscar desvios para o limite imposto pelo aquário.  
O texto de Brecht concebe um cenário no mar povoado por peixes em caixas, limitados ao cotidiano ditado por tubarões. Essas barreiras invisíveis colocadas no mar neste cenário fictício apenas transpõem uma realidade vivenciada pelos homens no cotidiano das cidades, em todos os níveis de experiência do espaço urbano.
O homem com o aquário, caminhando lentamente pelo Mercado do Porto, questionando o ritmo acelerado imposto no local, não apenas corporalmente, mas na percepção do espaço, reproduz o errante urbano citado por Jacques (2012), que experimenta a cidade de dentro, através das suas experiências itinerantes, se preocupando com práticas, ações e percursos.
Entendo o movimento dilatado do performer como projeção corporal da lentidão do errante urbano, não no sentido de rápido ou devagar, um outro tipo de lentidão, se referindo ao estado de apreensão do espaço urbano, indicando que “lentidão pode ser vista como crítica ou denúncia da aceleração contemporânea, da pressa que impossibilita a apreensão e reflexão mais vagarosa” (Jacques, 2012 p.24).
A performance Se os Tubarões fossem Homens carrega em sua estrutura uma crítica sobre a experiência limitada dos homens no espaço urbano. Se reconectar com a cidade é quebrar o aquário que nos circunda e desacelerar nossa percepção sobre a cidade, repensando os modos de experiência urbana.  

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Maria Thereza. Passeio de sombrinhas: poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade. Disponível em: <publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/magistro/article/view/2181/1007>. Acesso em: 25 jun. 2016.

GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. 2. ed. São Paulo, Perspectiva, 2009.

JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador, EDUFBA, 2012.

PEIXOTO, Fernando. Brecht: vida e obra. 3. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.




¹ O 100em1dia é um movimento mundial que acredita na potencialidade da iniciativa criativa e nas habilidades dos habitantes da cidade para melhorar os modos de viver nela. Surgiu em Bogotá em 2012 e já se espalhou pelo planeta: Kopenhagen, Toronto, Milão, Montreal, Santiago do Chile, Genebra, Cidade do Cabo entre outras. No Brasil, Rio de Janeiro e Blumenau. Cuiabá foi a 3ª cidade brasileira e a 28ª cidade do mundo a realizar o 100em1dia. Disponível em: <http://100em1diacuiaba.org/100em1dia/>. Acesso em 23 jun. 2016.

² Cidade Possível surge no programa de Pós Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, ECCO da UFMT, a partir da urgente necessidade de se pensar a cidade, pauta fundamental do debate contemporâneo, que busca encontrar outros modos de viver de se relacionar e se organizar socialmente. Disponível em: <http://cidadepossivelcuiaba.org/projeto/>. Acesso em 23 jun. 2016.

³ Disponível em: <teatrofaces.com.br>. Acesso em 24 jun. 2016.

⁴ Disponível em: <opovoempe.org>. Acesso em 24 jun. 2016.