Anna Cristina Garcia e Silva[1]
A cidade de Cuiabá vive 100 em 1 Dia.
“O que é uma
cidade? Dentre uma miríade de respostas possíveis, poderíamos dizer que uma
cidade é um conjunto de tempos criados coletivamente, num espaço que se
desdobra gradativamente; mesclando a memória de um marco zero ecossistêmico,
político e econômico, com o sonho de futuros, através do agenciamento dos
movimentos de seu desejo em constante devir”. (DUARTE, 2006, p. 113).
100 em 1 Dia é um movimento
que foi pensado para que as pessoas percebessem e se relacionassem com a cidade
em que vivem com um outro olhar, de tal maneira que pudessem interagir com a
cidade através de ações comunitárias em um único dia.
As ações englobam: arte,
ações sociais, eventos de lazer, entretenimento e principalmente ações que
propiciem melhorias urbanas e a possibilidade de que surjam políticas públicas
voltadas para a qualidade de vida e uma melhor interação e percepção nessa
relação homem/cidade.
Este projeto que podemos
chamar de festival da cidadania, nasceu em Bogotá em 2012 repensando a cidade
com reflexões nos mais diversos segmentos. E foi a partir do sucesso do projeto
100 em 1 Dia no que diz respeito a apropriação do espaço urbano que gerou uma
rede global onde ações coletivas são realizadas em diversos lugares do mundo e
assim compartilhados servindo de inspiração ou adequação às necessidades local.
Segundo “Jean-Jacques Rousseau na obra: O contrato Social:
“A cidade. Os
modernos quase que completamente esqueceram o verdadeiro sentido desta palavra:
a maior parte confunde as construções materiais de uma cidade com a própria
cidade e o habitante da cidade com um cidadão. Eles não sabem que as casas
constituem a parte material, mas que a verdadeira cidade é formada por
cidadãos.”
A velocidade com que as
coisas acontecem na cidade exige que projetos como o 100 em 1 Dia aconteça
favorecendo as relações sociais solidárias e que onde ocorra conflitos, estes
sejam, solucionados de maneira que o cidadão possa viver compartilhando e desfrutando
de uma cidade sustentável onde cultura e lazer favorecem o processo
civilizatório tão inerente à cidade e ao cidadão.
A cidade é um grande centro
industrial e comercial. Foi através do desenvolvimento e do aumento da produção
na agricultura que gerou a necessidade de estocagem de excedentes. É a partir
deste momento que a sociedade torna-se complexa e acontece o surgimento das
classes sociais baseadas na divisão do trabalho. Ocorre um grande equívoco quando a cidade é vista somente
como um lugar onde se concentram riquezas, poder político e religioso. A cidade
vai além, a cidade é o espaço urbano onde existe o cidadão que na maioria das
vezes é esquecido pelos governantes. A criação e execução de projetos como o
100 em 1 Dia surge para que ocorra a intervenção no espaço urbano e que as
pessoas que nela vivem sintam a sua cidade e percebam que é possível ter, viver
e conviver em um local realizando projetos que reconfigurem os espaços até
então esquecidos e o cotidiano da cidade, na busca de uma cidade voltada para
um bem maior que é a qualidade de vida dos que ali estão.
Jamais poderíamos deixar de
fora do Movimento Cidade Possível o inquieto, autêntico, irreverente e saudoso,
João Sebastião, afinal, foi dele a iniciativa de chamar a atenção de toda a
sociedade cuiabana ao ver na mídia uma foto da estátua da personagem folclórica
de Cuiabá, Maria Taquara esculpida pelo artista plástico Aroldo Tenuta[2].
Localizada no centro da capital em local estratégico, com seu pedestal rodeado
de sacos com lixo. Aquela cena o deixou triste e sentiu que como cidadão e
artista alguma intervenção precisava ser feita.
Segundo Maria Angélica
Melendí:
"O que hoje chamamos
de intervenção urbana envolve um pouco da intensa energia comunitária que
floresceu nos anos de chumbo. Os trabalhos dos artistas contemporâneos, porém,
buscam uma religação afetiva com os espaços degradados ou abandonados da
cidade, com o que foi expulso ou esquecido na afirmação dos novos centros. Por
meio do uso de práticas que se confundem com as da sinalização urbana, da
publicidade popular, dos movimentos de massa ou das tarefas cotidianas, esses
artistas pretendem abrir na paisagem pequenas trilhas que permitam escoar e
dissolver o insuportável peso de um presente cada vez mais opaco e
complexo."
Pronto, estava
criado o projeto “transmitologismo” termo criado por ele, de trânsito e mito. O
artista foi visto em vários locais e pontos turísticos de Cuiabá com uma trouxa
de roupa na cabeça.
Neste momento a
história de Maria Taquara é trazida por João Sebastião instigando a curiosidade
dos jovens e remexendo na memória dos cuiabanos mais velhos com o objetivo de
chamar atenção do Poder Público para o descaso em relação à nossa história.
João Sebastião costumava dizer que a frase do Historiador Rubens de
Mendonça[3], “Tudo o que
morre em Cuiabá, morre para sempre.” era
perfeita para retratar a situação. O Transmitologismo foi para as redes sociais
e obteve a adesão de 58 artistas de diversas áreas.
Segundo Huizinga
2014, p.217
“Há
fenômenos que a geração mais nova considera parte do “passado” e que para os
mais velhos continuam fazendo parte de “nosso tempo”, não só porque os mais
velhos ainda recordam pessoalmente esses fenômenos, mas, sobretudo porque eles
ainda fazem parte de sua cultura. Esta diferença quanto ao sentido do tempo
depende menos da geração a que se pertence do que do conhecimento que se possuí
das coisas antigas ou novas”.
É perceptível que em sua grande maioria as intervenções são
efêmeras. Assim como uma nota musical, as intervenções duram o tempo da
condução do ritmo cotidiano para um ritmo poético
repleto de devaneios que provocam questionamentos. Agora, afirmar por quanto
tempo tudo o que foi gerado em quem o presenciou pode durar não poderemos dizer
jamais com exatidão.
Wagner Barja nos
diz o seguinte:
"Cabe observar que,
atualmente nas artes visuais, a linguagem da intervenção urbana precipita-se
num espaço ampliado de reflexão para o pensamento contemporâneo. Importante
para o livre crescimento das artes, a linguagem das intervenções instala-se
como instrumento crítico e investigativo para elaboração de valores e
identidades das sociedades. Aparece como uma alternativa aos circuitos
oficiais, capaz de proporcionar o acesso direto e de promover um corpo-a-corpo
da obra de arte com o público, independente de mercados consumidores ou de
complexas e burocratizantes instituições culturais."
“As crionças de João Sebastião”, que
foi idealizada e planejada pelo GPPIN – Grupo de Pesquisa em Psicologia da
Infância que pertence ao PPGE – Programa de Pós Graduação em Educação da UFMT e
pela Casa de Cultura Silva Freire que em pareceria com o movimento Cidade
Possível, idealizado pela professora
Dr.ª Maria Thereza Azevedo[4], participaram do evento 100
em 1 Dia realizado em Cuiabá. Para
o sucesso dessa parceria muitas reuniões foram realizadas com a participação de
discentes do Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura
Contemporânea – ECCO.
Figura 01: Grupo reunido para o planejamento de
atividades. Local: Sala do GPPIN, UFMT, Cuiabá, 2016.
Foto: Elaborada pela autora Anna
Cristina Garcia e Silva
A ação envolveria as obras do artista sendo apresentada às crianças para
que fizessem uma releitura. Alguns protocolos precisaram ser seguidos, como por
exemplo: contato com a escola; pedido de autorização de imagens; encontros com
o grupo e decisão sobre qual metodologia utilizar. Após definição de quais
imagens/obras do artista seriam utilizadas para expor às crianças, foi à vez de
providenciar: tesoura, giz de cera, cola papéis específicos e coloridos,
recortados em diversas formas em quantidade suficiente para que todas as
crianças convidadas pudessem participar e liberar a imaginação através de
desenhos e esculturas que também lembrassem uma onça.
Figura 02: Grupo reunido para a organização dos materiais e planejamento de
atividades. Local: Sala do GPPIN, UFMT, Cuiabá, 2016.
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina
Garcia e Silva
O pensamento de Derdyk,
2004, p.7, vinha de encontro ao que pretendíamos com a ação.
“O desenho do adulto
e o desenho da criança não são produções estanques. Ambos participam do
patrimônio humano de aquisição de conhecimento, complementando-se,
remetendo-se. Surge daí muitos pontos de reflexão, de convergência e
antagonismo, no confronto entre produção gráfica infantil e o universo cultural
do adulto”.
A ação: “As crionças de João Sebastião” que foi
realizada na Escola Municipal de Educação Básica Silva Freire, localizada na
Avenida Bakaeri, no bairro Jardim Itapajé, na região do Coxipó. Por intermédio
do projeto 100 em 1 Dia e do Movimento Cidade Possível realizado em Cuiabá no
dia três de abril de 2016, esta ação ocorreu simultaneamente à outras
intervenções. Contamos ainda com a presença e participação de Alexandra Costa
Aguiar Barthalo e Érica Costa Aguiar, filhas do artista homenageado, João
Sebastião F. da Costa, falecido em 28/02/2016.
João Sebastião foi
desenhista, pintor, escultor, figurinista e professor, nascido na região do
Coxipó da Ponte, nas proximidades do São Gonçalo Beira Rio. As telas e
esculturas por ele produzidas estão repletas de elementos e símbolos, mitos e
lendas, que variam desde: imagens
religiosas, canoa sobre as águas, caju, viola de cocho, potes de cerâmica,
porém em todos os trabalhos a onça pintada estava presente, às vezes de forma
clara e explícita, outras necessitavam de um olhar mais atento para descobrir
algo da onça. Tudo que era produzido por ele retratava a cultura popular
cuiabana por meio de memórias que fizeram parte de uma infância feliz
de um menino saudável que corria e brincava fazendo muitas peripécias.
Certa vez estávamos no São
Gonçalo Beira Rio, na casa de Dona Domingas e ele fez questão de me levar até o
fundo do quintal e disse:
“Anna, essa Figueira tem mais de 130 anos,
fui criado livre correndo por aqui, tudo era diferente, na minha época de
moleque jogávamos bola na rua sem preocupação, subíamos em árvores e
saboreávamos deliciosas frutas. Mas essa aqui, a “Figueira Mãe” era a minha
preferida, gostava de subir e ficar quietinho lá em cima com meu caderno e a
imaginação vagava, vagava e depois estavam concretizados em meus desenhos.
Abraçou aquela magnífica e imponente árvore e agradeceu em voz alta a mãe natureza”.[5]
Figura 03: Visita
realizada na Comunidade São Gonçalo Beiro Rio, na cidade de Cuiabá-MT em 2015.
Fonte: Elaborada pela
autora Anna Cristina Garcia e Silva
O pensamento de Ostrower,
1978. De que: “O processo vivencial está diretamente ligado ao processo
criativo”. Define o nosso artista. A narração desse fato evidencia com total
clareza que ser criança é não fazer parte dessa inércia que a vida adulta
muitas vezes nos impõe. A criança está em constante movimento. Nada passa despercebido
e a criança com olhar aguçado avaliam e observam tudo que acontece ao seu redor
e agem como conquistadores e descobridores, tudo é novidade e encantamento.
Para Derdyk (2004, p.11) “A
vivência é a fonte do crescimento, o alicerce da construção de nossa
identidade. Fornece um leque de repertório, amplia a possibilidade expressiva”.
Dessa forma, o objetivo da ação “As Crionças de João Sebastião” foi
realizar uma intervenção em uma linda manhã de domingo, apresentando a história
da vida e obra do artista para as crianças do terceiro ano do ensino
fundamental através de atividades lúdicas envolvendo desenho, pintura, colagem
e confecção de esculturas.
Foi
explicado para as crianças que receberiam materiais e que as filhas do artista
iriam falar sobre ele para que pudessem conhecer um pouco um pouco sobre o
artista que criou telas incríveis brincando em colocar a onça pintada em tudo
elas falaram para as crianças como o pai gostava de comer caju, o
jeito brincalhão de viver, e que era muito disciplinado, tinha horário para
tudo e ficava todo orgulhoso quando dizia para as pessoas que aos 12 anos já
possuía um atelier.
A
importância de se conhecer os artistas e os processos artísticos de construção
das obras é enfatizada por Maria Heloísa C. de T. Ferraz (2009) ao afirmar que:
Conhecer os artistas,
ver como trabalham, observar suas obras é outro passo para aprender a pensar e
apreciar a arte. A observação atenta do trabalho artístico e sua inserção na
sociedade, a sua identificação, a percepção da linguagem e dos significados que
contém, são conhecimentos específicos do campo artístico e que aprimoram tanto
o processo de produção como a percepção estética. (FERRAZ, 2009, p. 29)
Figura 04: Apresentação de imagens das obras do
artista. Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva
Sílvia Mara Davies[6],
que é uma grande pesquisadora das obras do João Sebastião,
mostrou alguns trabalhos do artista e como que ele fazia para que tudo virasse
ou nos remetesse a onça, em seguida todas as crianças usaram a imaginação que
lhes é pertinente e através dos recortes que receberam criaram objetos e
desenhos onde a onça também estava presente. Deixando claro para elas que por
meio da diversão seriam os artistas “crionças” daquela manhã.
Figura 05: As
crianças soltando a imaginação.
Local:
Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016.
Fonte: Elaborada pela autora Anna
Cristina Garcia e Silva
Figura 06: As
crianças soltando a imaginação.
Local:
Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016.
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva
O resultado desta ação foi surpreendente, as
produções artísticas foram muito criativas, o jogo de cores e formas foi
concretizado conforme a proposta da atividade. Nesta perspectiva, cabe
ressaltar o pensamento de Francastel: “As etapas de representação do espaço na
criança trazem notáveis esclarecimentos sobre as diferentes formas que podem
tomar o desenho e a representação figurada no mundo”.
Figura 07: Finalização e exposição das obras de
artes
Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016.
Fonte: Elaborada pela autora Silvia Mara Davies
Durante as reuniões com o GPPIN, ficou acertado
que as esculturas e desenhos confeccionados durante a atividade ficariam
expostos na escola para a comunidade escolar. Porém, para surpresa de todos os
adultos ali presentes as crianças quiseram levar para casa. Essa surpreendente
atitude das “crionças” nos mostra a relação que se dá entre a obra e o artista.
Edith Derdyk (2004) afirma que “O desenho é a manifestação de uma necessidade
vital da criança: agir sobre o mundo que a cerca, intercambiar, comunicar.”
(Derdyk, 2004, p. 51).
Figura 08: Filhas e neto do
artista homenageado.
Local: Escola E. M.
Silva Freire, Cuiabá, 2016.
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva
Figura 09: Escultura
confeccionada na atividade artística
Local: Escola E. M.
Silva Freire, Cuiabá, 2016.
Fonte: Elaborada pela
autora Silvia Mara Davies
Figura 10: Escultura
confeccionada na atividade artística
Local: Escola E. M.
Silva Freire, Cuiabá, 2016.
Fonte: Elaborada pela
autora Silvia Mara Davies
O movimento Cidade Possível, e as ações por ele
produzidas devem ser repetidas sempre que possível. A globalização promove a fragmentação dos espaços, da
economia e da vida, a cidade já não pertence de forma igualitária a todos os
cidadãos, vivemos em um verdadeiro burburinho urbano onde convivemos com
diversas representações culturais que nos fazem pensar que o desenho se
manifesta em diversas atividades. E com certeza essa manhã de domingo fez muita
diferença para as “crionças” e a comunidade local ao serem apresentadas as
obras de João Sebastião e poderem liberar a imaginação através de formas,
desenhos e cores.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA
DERDIKY, Edithy. Formas de pensar o desenho: desenvolvimento do
grafismo infantil. 3ª ed. São Paulo: Scipione, 2004.
DUARTE,
E. Desejo de cidade – múltiplos tempos, das múltiplas cidades, de uma mesma
cidade. In: PRYSTON, A. (Org). Imagens da cidade: Espaços urbanos na comunicação
e cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2006
FERRAZ, Maria Heloísa C. de T. Maria F. de Rezende e Fusari. Metodologia
do ensino da arte. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2009.
HUIZINGA,
Johan. Homo Ludens. 8ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2014
MELENDI,
María Angélica. Disponível em:
<http://www.intervencaourbana.org/
OSTROWER, Fayga. Criatividade e
processos de criação. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2010.
ROUSSEAU,
Jean-Jacques. O contrato Social. 1ª Ed. São Paulo: Martin Claret, 2013.
[1]
Mestranda do Programa
de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea - ECCO/UFMT e Docente da
Escola Est. EM. Prof.ª Adalgisa de Barros - SEDUC/MT, e-mail: acgs1972@gmail.com
[2] Aroldo Civis Tenuta, artista plástico cuiabano, já falecido. Têm obras
espalhadas por todo Brasil e Exterior.
[3]
Rubens de Mendonça, Cuiabano, poeta, historiador e jornalista. Falecido em
1983.
[4]
Professora Doutora da disciplina: Tópicos
Especiais em Poéticas Contemporâneas III, do Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Cultura Contemporânea - ECCO da UFMT - Campus Cuiabá.
[5]
João Sebastião F. da Costa, artista plástico Cuiabano. Falecido em 28 de
fevereiro de 2016.
[6] Mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea e docente do
Instituto Federal de Mato Grosso, E-mail: silvia.davies@srs.ifmt.edu.br
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