quarta-feira, 20 de julho de 2016

AS “CRIONÇAS” DE JOÃO SEBASTIÃO DA COSTA

                                                                                                 Anna Cristina Garcia e Silva[1]

A cidade de Cuiabá vive 100 em 1 Dia.


“O que é uma cidade? Dentre uma miríade de respostas possíveis, poderíamos dizer que uma cidade é um conjunto de tempos criados coletivamente, num espaço que se desdobra gradativamente; mesclando a memória de um marco zero ecossistêmico, político e econômico, com o sonho de futuros, através do agenciamento dos movimentos de seu desejo em constante devir”. (DUARTE, 2006, p. 113).

100 em 1 Dia é um movimento que foi pensado para que as pessoas percebessem e se relacionassem com a cidade em que vivem com um outro olhar, de tal maneira que pudessem interagir com a cidade através de ações comunitárias em um único dia.
As ações englobam: arte, ações sociais, eventos de lazer, entretenimento e principalmente ações que propiciem melhorias urbanas e a possibilidade de que surjam políticas públicas voltadas para a qualidade de vida e uma melhor interação e percepção nessa relação homem/cidade.
Este projeto que podemos chamar de festival da cidadania, nasceu em Bogotá em 2012 repensando a cidade com reflexões nos mais diversos segmentos. E foi a partir do sucesso do projeto 100 em 1 Dia no que diz respeito a apropriação do espaço urbano que gerou uma rede global onde ações coletivas são realizadas em diversos lugares do mundo e assim compartilhados servindo de inspiração ou adequação às necessidades local. Segundo “Jean-Jacques Rousseau na obra: O contrato Social:

“A cidade. Os modernos quase que completamente esqueceram o verdadeiro sentido desta palavra: a maior parte confunde as construções materiais de uma cidade com a própria cidade e o habitante da cidade com um cidadão. Eles não sabem que as casas constituem a parte material, mas que a verdadeira cidade é formada por cidadãos.”

A velocidade com que as coisas acontecem na cidade exige que projetos como o 100 em 1 Dia aconteça favorecendo as relações sociais solidárias e que onde ocorra conflitos, estes sejam, solucionados de maneira que o cidadão possa viver compartilhando e desfrutando de uma cidade sustentável onde cultura e lazer favorecem o processo civilizatório tão inerente à cidade e ao cidadão.
A cidade é um grande centro industrial e comercial. Foi através do desenvolvimento e do aumento da produção na agricultura que gerou a necessidade de estocagem de excedentes. É a partir deste momento que a sociedade torna-se complexa e acontece o surgimento das classes sociais baseadas na divisão do trabalho. Ocorre um grande equívoco quando a cidade é vista somente como um lugar onde se concentram riquezas, poder político e religioso. A cidade vai além, a cidade é o espaço urbano onde existe o cidadão que na maioria das vezes é esquecido pelos governantes. A criação e execução de projetos como o 100 em 1 Dia surge para que ocorra a intervenção no espaço urbano e que as pessoas que nela vivem sintam a sua cidade e percebam que é possível ter, viver e conviver em um local realizando projetos que reconfigurem os espaços até então esquecidos e o cotidiano da cidade, na busca de uma cidade voltada para um bem maior que é a qualidade de vida dos que ali estão.
Jamais poderíamos deixar de fora do Movimento Cidade Possível o inquieto, autêntico, irreverente e saudoso, João Sebastião, afinal, foi dele a iniciativa de chamar a atenção de toda a sociedade cuiabana ao ver na mídia uma foto da estátua da personagem folclórica de Cuiabá, Maria Taquara esculpida pelo artista plástico Aroldo Tenuta[2]. Localizada no centro da capital em local estratégico, com seu pedestal rodeado de sacos com lixo. Aquela cena o deixou triste e sentiu que como cidadão e artista alguma intervenção precisava ser feita.
Segundo Maria Angélica Melendí:

"O que hoje chamamos de intervenção urbana envolve um pouco da intensa energia comunitária que floresceu nos anos de chumbo. Os trabalhos dos artistas contemporâneos, porém, buscam uma religação afetiva com os espaços degradados ou abandonados da cidade, com o que foi expulso ou esquecido na afirmação dos novos centros. Por meio do uso de práticas que se confundem com as da sinalização urbana, da publicidade popular, dos movimentos de massa ou das tarefas cotidianas, esses artistas pretendem abrir na paisagem pequenas trilhas que permitam escoar e dissolver o insuportável peso de um presente cada vez mais opaco e complexo."

Pronto, estava criado o projeto “transmitologismo” termo criado por ele, de trânsito e mito. O artista foi visto em vários locais e pontos turísticos de Cuiabá com uma trouxa de roupa na cabeça.
Neste momento a história de Maria Taquara é trazida por João Sebastião instigando a curiosidade dos jovens e remexendo na memória dos cuiabanos mais velhos com o objetivo de chamar atenção do Poder Público para o descaso em relação à nossa história. João Sebastião costumava dizer que a frase do Historiador Rubens de Mendonça[3], “Tudo o que morre em Cuiabá, morre para sempre.” era perfeita para retratar a situação. O Transmitologismo foi para as redes sociais e obteve a adesão de 58 artistas de diversas áreas.
Segundo Huizinga 2014, p.217

“Há fenômenos que a geração mais nova considera parte do “passado” e que para os mais velhos continuam fazendo parte de “nosso tempo”, não só porque os mais velhos ainda recordam pessoalmente esses fenômenos, mas, sobretudo porque eles ainda fazem parte de sua cultura. Esta diferença quanto ao sentido do tempo depende menos da geração a que se pertence do que do conhecimento que se possuí das coisas antigas ou novas”.

É perceptível que em sua grande maioria as intervenções são efêmeras. Assim como uma nota musical, as intervenções duram o tempo da condução do ritmo cotidiano para um ritmo poético repleto de devaneios que provocam questionamentos. Agora, afirmar por quanto tempo tudo o que foi gerado em quem o presenciou pode durar não poderemos dizer jamais com exatidão.
Wagner Barja nos diz o seguinte:

"Cabe observar que, atualmente nas artes visuais, a linguagem da intervenção urbana precipita-se num espaço ampliado de reflexão para o pensamento contemporâneo. Importante para o livre crescimento das artes, a linguagem das intervenções instala-se como instrumento crítico e investigativo para elaboração de valores e identidades das sociedades. Aparece como uma alternativa aos circuitos oficiais, capaz de proporcionar o acesso direto e de promover um corpo-a-corpo da obra de arte com o público, independente de mercados consumidores ou de complexas e burocratizantes instituições culturais." 

 “As crionças de João Sebastião”, que foi idealizada e planejada pelo GPPIN – Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infância que pertence ao PPGE – Programa de Pós Graduação em Educação da UFMT e pela Casa de Cultura Silva Freire que em pareceria com o movimento Cidade Possível, idealizado pela professora Dr.ª Maria Thereza Azevedo[4], participaram do evento 100 em 1 Dia realizado em Cuiabá. Para o sucesso dessa parceria muitas reuniões foram realizadas com a participação de discentes do Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCO.

Figura 01: Grupo reunido para o planejamento de atividades. Local: Sala do GPPIN, UFMT, Cuiabá, 2016.
Foto: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva

A ação envolveria as obras do artista sendo apresentada às crianças para que fizessem uma releitura. Alguns protocolos precisaram ser seguidos, como por exemplo: contato com a escola; pedido de autorização de imagens; encontros com o grupo e decisão sobre qual metodologia utilizar. Após definição de quais imagens/obras do artista seriam utilizadas para expor às crianças, foi à vez de providenciar: tesoura, giz de cera, cola papéis específicos e coloridos, recortados em diversas formas em quantidade suficiente para que todas as crianças convidadas pudessem participar e liberar a imaginação através de desenhos e esculturas que também lembrassem uma onça.

Figura 02: Grupo reunido para a organização dos materiais e planejamento de atividades. Local: Sala do GPPIN, UFMT, Cuiabá, 2016.
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva

O pensamento de Derdyk, 2004, p.7, vinha de encontro ao que pretendíamos com a ação.

“O desenho do adulto e o desenho da criança não são produções estanques. Ambos participam do patrimônio humano de aquisição de conhecimento, complementando-se, remetendo-se. Surge daí muitos pontos de reflexão, de convergência e antagonismo, no confronto entre produção gráfica infantil e o universo cultural do adulto”.

A ação: “As crionças de João Sebastião” que foi realizada na Escola Municipal de Educação Básica Silva Freire, localizada na Avenida Bakaeri, no bairro Jardim Itapajé, na região do Coxipó. Por intermédio do projeto 100 em 1 Dia e do Movimento Cidade Possível realizado em Cuiabá no dia três de abril de 2016, esta ação ocorreu simultaneamente à outras intervenções. Contamos ainda com a presença e participação de Alexandra Costa Aguiar Barthalo e Érica Costa Aguiar, filhas do artista homenageado, João Sebastião F. da Costa, falecido em 28/02/2016.
João Sebastião foi desenhista, pintor, escultor, figurinista e professor, nascido na região do Coxipó da Ponte, nas proximidades do São Gonçalo Beira Rio. As telas e esculturas por ele produzidas estão repletas de elementos e símbolos, mitos e lendas, que variam desde: imagens religiosas, canoa sobre as águas, caju, viola de cocho, potes de cerâmica, porém em todos os trabalhos a onça pintada estava presente, às vezes de forma clara e explícita, outras necessitavam de um olhar mais atento para descobrir algo da onça. Tudo que era produzido por ele retratava a cultura popular cuiabana por meio de memórias que fizeram parte de uma infância feliz de um menino saudável que corria e brincava fazendo muitas peripécias.
Certa vez estávamos no São Gonçalo Beira Rio, na casa de Dona Domingas e ele fez questão de me levar até o fundo do quintal e disse:

 “Anna, essa Figueira tem mais de 130 anos, fui criado livre correndo por aqui, tudo era diferente, na minha época de moleque jogávamos bola na rua sem preocupação, subíamos em árvores e saboreávamos deliciosas frutas. Mas essa aqui, a “Figueira Mãe” era a minha preferida, gostava de subir e ficar quietinho lá em cima com meu caderno e a imaginação vagava, vagava e depois estavam concretizados em meus desenhos. Abraçou aquela magnífica e imponente árvore e agradeceu em voz alta a mãe natureza”.[5]

Figura 03: Visita realizada na Comunidade São Gonçalo Beiro Rio, na cidade de Cuiabá-MT em 2015.
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva

O pensamento de Ostrower, 1978. De que: “O processo vivencial está diretamente ligado ao processo criativo”. Define o nosso artista. A narração desse fato evidencia com total clareza que ser criança é não fazer parte dessa inércia que a vida adulta muitas vezes nos impõe. A criança está em constante movimento. Nada passa despercebido e a criança com olhar aguçado avaliam e observam tudo que acontece ao seu redor e agem como conquistadores e descobridores, tudo é novidade e encantamento.
Para Derdyk (2004, p.11) “A vivência é a fonte do crescimento, o alicerce da construção de nossa identidade. Fornece um leque de repertório, amplia a possibilidade expressiva”.
 Dessa forma, o objetivo da ação “As Crionças de João Sebastião” foi realizar uma intervenção em uma linda manhã de domingo, apresentando a história da vida e obra do artista para as crianças do terceiro ano do ensino fundamental através de atividades lúdicas envolvendo desenho, pintura, colagem e confecção de esculturas.
Foi explicado para as crianças que receberiam materiais e que as filhas do artista iriam falar sobre ele para que pudessem conhecer um pouco um pouco sobre o artista que criou telas incríveis brincando em colocar a onça pintada em tudo elas falaram para as crianças como o pai gostava de comer caju, o jeito brincalhão de viver, e que era muito disciplinado, tinha horário para tudo e ficava todo orgulhoso quando dizia para as pessoas que aos 12 anos já possuía um atelier.
A importância de se conhecer os artistas e os processos artísticos de construção das obras é enfatizada por Maria Heloísa C. de T. Ferraz (2009) ao afirmar que:  

Conhecer os artistas, ver como trabalham, observar suas obras é outro passo para aprender a pensar e apreciar a arte. A observação atenta do trabalho artístico e sua inserção na sociedade, a sua identificação, a percepção da linguagem e dos significados que contém, são conhecimentos específicos do campo artístico e que aprimoram tanto o processo de produção como a percepção estética. (FERRAZ, 2009, p. 29)


Figura 04: Apresentação de imagens das obras do artista. Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva

Sílvia Mara Davies[6], que é uma grande pesquisadora das obras do João Sebastião, mostrou alguns trabalhos do artista e como que ele fazia para que tudo virasse ou nos remetesse a onça, em seguida todas as crianças usaram a imaginação que lhes é pertinente e através dos recortes que receberam criaram objetos e desenhos onde a onça também estava presente. Deixando claro para elas que por meio da diversão seriam os artistas “crionças” daquela manhã.
Figura 05: As crianças soltando a imaginação.
Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016.
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva

Figura 06: As crianças soltando a imaginação.
Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016.
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva

O resultado desta ação foi surpreendente, as produções artísticas foram muito criativas, o jogo de cores e formas foi concretizado conforme a proposta da atividade. Nesta perspectiva, cabe ressaltar o pensamento de Francastel: “As etapas de representação do espaço na criança trazem notáveis esclarecimentos sobre as diferentes formas que podem tomar o desenho e a representação figurada no mundo”.

Figura 07: Finalização e exposição das obras de artes
Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016.
 
Fonte: Elaborada pela autora Silvia Mara Davies

Durante as reuniões com o GPPIN, ficou acertado que as esculturas e desenhos confeccionados durante a atividade ficariam expostos na escola para a comunidade escolar. Porém, para surpresa de todos os adultos ali presentes as crianças quiseram levar para casa. Essa surpreendente atitude das “crionças” nos mostra a relação que se dá entre a obra e o artista. Edith Derdyk (2004) afirma que “O desenho é a manifestação de uma necessidade vital da criança: agir sobre o mundo que a cerca, intercambiar, comunicar.” (Derdyk, 2004, p. 51).
Figura 08: Filhas e neto do artista homenageado.
Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016.
Fonte: Elaborada pela autora Anna Cristina Garcia e Silva

Figura 09: Escultura confeccionada na atividade artística
Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016.
 
Fonte: Elaborada pela autora Silvia Mara Davies


Figura 10: Escultura confeccionada na atividade artística
Local: Escola E. M. Silva Freire, Cuiabá, 2016.
 
Fonte: Elaborada pela autora Silvia Mara Davies


O movimento Cidade Possível, e as ações por ele produzidas devem ser repetidas sempre que possível. A globalização promove a fragmentação dos espaços, da economia e da vida, a cidade já não pertence de forma igualitária a todos os cidadãos, vivemos em um verdadeiro burburinho urbano onde convivemos com diversas representações culturais que nos fazem pensar que o desenho se manifesta em diversas atividades. E com certeza essa manhã de domingo fez muita diferença para as “crionças” e a comunidade local ao serem apresentadas as obras de João Sebastião e poderem liberar a imaginação através de formas, desenhos e cores.







REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFIA


BARJA, Wagner.  Disponível em: <http://www.intervencaourbana.org/

DERDIKY, Edithy. Formas de pensar o desenho: desenvolvimento do grafismo infantil. 3ª ed. São Paulo: Scipione, 2004.

DUARTE, E. Desejo de cidade – múltiplos tempos, das múltiplas cidades, de uma mesma cidade. In: PRYSTON, A. (Org). Imagens da cidade: Espaços urbanos na comunicação e cultura contemporânea. Porto Alegre: Sulina, 2006

FERRAZ, Maria Heloísa C. de T. Maria F. de Rezende e Fusari. Metodologia do ensino da arte. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2009.

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. 8ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2014

MELENDI, María Angélica. Disponível em: <http://www.intervencaourbana.org/

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2010.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato Social. 1ª Ed. São Paulo: Martin Claret, 2013.








[1] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea - ECCO/UFMT e Docente da Escola Est. EM. Prof.ª Adalgisa de Barros - SEDUC/MT, e-mail: acgs1972@gmail.com
[2] Aroldo Civis Tenuta, artista plástico cuiabano, já falecido. Têm obras espalhadas por todo Brasil e Exterior.
[3] Rubens de Mendonça, Cuiabano, poeta, historiador e jornalista. Falecido em 1983.
[4] Professora Doutora da disciplina: Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas III, do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea - ECCO da UFMT - Campus Cuiabá.
[5] João Sebastião F. da Costa, artista plástico Cuiabano. Falecido em 28 de fevereiro de 2016.
[6]  Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea e docente do Instituto Federal de Mato Grosso, E-mail: silvia.davies@srs.ifmt.edu.br    

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