terça-feira, 2 de agosto de 2016

Aparas do meu lápis, minha feira, meu contexto cidade.

Thereza Helena de Souza Nunes


Há  as que resistiram aos ventos fortes de Bogotá, as que moravam dentro da caixa quando ela ainda era de papelão e também as que ficaram pelo caminho. As aparas do meu lápis já registraram memórias sobre filhotinhos vira-latas e tatuagens em terras internacionais, mas é sobre as que ficaram pelo chão na minha cidade, no meu bairro e na minha feira de domingo que vou escrever hoje.
As paredes já tinham sido quebradas e eu necessitava de um espaço mais amplo, mais movimentado, mais genuinamente vivo que a sala de espetáculos para meus experimentos artísticos. Eu ansiava por pessoas passando, indo e vindo em seus trajetos singulares, pois desejava provocar um desvio nesses caminhos. Tomada pela ideia de que a sala de ensaio poderia ser expandida para qualquer lugar que meu corpo ocupasse, eu procurava pela cidade um lugar para abrigar minha nova criação. Caminhando entre pernas corridas e faixas de pedrestre, percebi que a cidade era o lugar. Com essa percepção foram fundamentais os apontamentos de Borriaud sobre o tema, dos quais destaco: "A cidade permitiu e generalizou a experiência da proximidade: ela é o símbolo tangível e o quadro histórico do estado de sociedade, esse estado de encontro fortuito imposto aos homens". (Borriaud, 2009, p. 21).
Sou atriz e a experiência de criar com a cidade diferia das minhas referências artísticas anteriores (mas não menos importantes, vale dizer) do teatro tradicional, me preparei para enxergar potência fora do campo da representação já que buscava a estreiteza com o cotidiano. A esse respeito as letras de Paul Ardenne e Renato Ferracini fomentaram a minha experimentação: a criação foca mais na “presentação”, ação de estar presente, vigilante, do que na representação (Ardenne, 2006) e pode provocar nas pessoas uma resposta que conecta a arte ao cotidiano, aproximando-a da experiência real da vida. “A experiência tem o potencial de dobrar o fluxo comum e de afetar, produzir um nódulo, um aglomerado, um desvio potente de vida”. (FERRACINI, 2006, p. 37).
Envolvida no processo de reivindicar a cidade como espaço para a arte, cito Medeiros: “A arte que fugiu de casa: deixou a escola e foi aprender na rua, deseja ser aberta à participação”. Nessa afirmação comparo o termo casa às estruturas do teatro convencional e rua à cidade. Com o desejo de redimensionar, reescrever e contaminar o trabalho, eu levava meus dois banquinhos para um ponto movimentado, posicionava-os lado a lado e colocava entre eles o pote de lápis e a caixa. Em seguida sentava, observava o movimento e começava a apontar os lápis.
Podia ser uma praça, um cruzamento, um ponto de ônibus, mas no 3 de abril do 100em1 dia foi na feirinha do bairro Cpa II, a minha feirinha de domingo. Instalei meus lápis entre duas barracas, a de frutas e a do Zé do Feijão. Seu Zé acostumado a me ver e  perguntar se ia o de sempre, 1 kg de feijão fantasia que só a barraca dele vende, minutos depois de iniciar os apontamentos dos lápis, talvez incomodado com a minha observação insistente, veio especular o motivo de eu estar sentada ali. Enquanto respondia eu continuava apontando os lápis.  As aparas caíam na caixa e só então soube que Zé do feijão se chama Antônio, tem dois filhos já formados e não sabia que eu era artista. Uma freguesa veio pedir o troco, então seu Antônio me devolveu o apontador com o lápis. Eu fechei a caixa e metaforicamente guardei ali dentro a memórias da nossa conversa, equilibrei a caixa no topo da cabeça e iniciei a caminhada arriscada de Apontamentos: Memórias em Percurso.
Cuidar dos pés para que não tropeçassem nos buracos da rua transformada em comércio pelas inúmeras barraquinhas era um desafio para a caixa equilibrada no alto da minha cabeça. Flexionar os joelhos para desviar a cabeça dos fios quem com gambiarra amarravam as tendas umas as outras formando uma enorme rede decepadora de cabeças até para os não tão altos é que foram elas. A cada passo um chamado a provar a melancia doce, ou aproveitar a promoção do abacaxi a dois por 5. Porém a maior surpresa nessa polifonia a céu aberto foi o cantador das pedras do bingo anunciando no microfone que conforme o combinado, não iria avisar que estava acontecendo uma apresentação.
Assim que finalizei o percurso e me preparava para mais uma ação das 100 planejadas para presentear Cuiabá naquele dia, cruzei com outro grupo de colegas performando ali, se deixando regar entre vendedores de pen drive já com músicas, tênis Nike semioriginais ambos ocupando aquele espaço de troca, compondo o contexto de nossa cidade. Ali atravessada pelas histórias compartilhadas comigo entre um lápis e ação Regue do Comadança vi o estreitamento entre arte e vida onde eu buscava pastel frito e caldo de cana.  Nesse sentido encontrei em Borriaud faíscas para alimentar essa observação: "As obras já não perseguem a meta de formar realidades imaginárias ou utópicas, mas procuram constituir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente, qualquer que seja a escala escolhida pelo artista". (BORRIAUD, 2009).
Em nenhum domingo antes daquele eu percebi uma troca tão potente de vivências. Eu comumente saía da feira com a sacola carregada de verduras para a semana, mas nesse domingo a sacola ficou cheia de material para o meu ofício. Nesse contexto eu me via como a artista que participa da vida, como menciona Medeiros:
O artista, no mundo, é vida, participa da vida, traz vidas às pessoas-robôs, permeia os porquês. O artista na rua(...) compõe e decompõe. A composição urbana evidencia o delírio que a cidade-sociedade passa e passa correndo; sem ver, ouvir, tocar ou massagear. (MEDEIROS, 2015, p. 2)
Legitimando a cidade como o meu espaço de atuação para o referido trabalho, considerei alguns termos que se referiam a produções envolvendo a cidade. Os principais eram: intervenção e interferência urbana. No entanto, ambas as abordagens me soavam agressivas e autoritárias demais. Vi na proposta da composição urbana trazida por Beatriz Medeiros elementos de ação mais maleáveis: “Compor é massagear os espaços, aí implantar desvios, rios, meandros antes invisíveis”. (MEDEIROS, 2015).
Vendo no meu trabalho, na performance “Regue” a suma importância da colaboração tanto do espaço quanto do público para a realização da obra, trago para a pauta novamente Borriaud:
Ainda na constituição da concepção do meu processo vi na possibilidade de uma arte relacional uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico, autônomo e privado. (BORRIAUD, 2009, p. 19)
Nesse sentido quando vi algumas das aparas de lápis espalhadas pelo chão, a água que tinha regado os “pés de gente” dos garotos que fazem a performace “Regue” na qual vestidos somente com uma calça jeans e uma muda de planta envolta no corpo por plástico filme se deixam regar pelos transeuntes, evoquei Medeiros “A performance de rua inscreve, escreve, escorre no corpo da cidade para aí deixar sua cicatriz: sinal nomadizante, por oposição aos sinais normatizantes da sociedade de controle, que torna possível uma dimensão poética. Censura, ruptura, debate”. (MEDEIROS, 2005).
Registrei o que pude com a câmera do celular, e me preparei para desenrolar mais plástico, dessa vez para a performance “ Não cabe mais Gente” que também seria “desanunciada” pelo locutor do bingo que ainda não tinha acabado.



Referências Bibliográficas:
Leituras, S. M. E. "Notas sobre a experiência e o saber de experiência." (2006).
de Gasperi, Marcelo Eduardo Rocco. "OEstreitamento ENTRE O ESPECTADOR E A CENA CONTEMPORÂNEA."

Ferracini, Renato. "O corpo cotidiano e o corpo-subjétil: relações." III Congresso Brasileiro De Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas. 2003.

García Canclini, Néstor. Culturas híbridas: estrategias para entrar y salir de la modernidad. México, 1989.


BOURRIAUD, Nicolas. "Estética Relacional: tradução." Denise Bottman–São Paulo Martins fontes (2006).

MEDEIROS, Beatriz; Composições urbanas, http://grafiasdebiamedeiros.blogspot.com.br/2014/05/composicao-urbana-surpreensao-e.html

MEDEIROS, Beatriz: Iteração, participação e performance, http://grafiasdebiamedeiros.blogspot.com.br/2014/05/composicao-urbana-surpreensao-e.html

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