Thereza Helena de Souza Nunes
Há as que resistiram aos ventos fortes de Bogotá, as que moravam dentro da caixa
quando ela ainda era de papelão e também as que ficaram pelo caminho. As aparas
do meu lápis já registraram memórias sobre filhotinhos vira-latas e tatuagens
em terras internacionais, mas é sobre as que ficaram pelo chão na minha cidade,
no meu bairro e na minha feira de domingo que vou escrever hoje.
As
paredes já tinham sido quebradas e eu necessitava de um espaço mais amplo, mais
movimentado, mais genuinamente vivo que a sala de espetáculos para meus
experimentos artísticos. Eu ansiava por pessoas passando, indo e vindo em seus
trajetos singulares, pois desejava provocar um desvio nesses caminhos. Tomada
pela ideia de que a sala de ensaio poderia ser expandida para qualquer lugar
que meu corpo ocupasse, eu procurava pela cidade um lugar para abrigar minha
nova criação. Caminhando entre pernas corridas e faixas de pedrestre, percebi
que a cidade era o lugar. Com essa percepção foram fundamentais os apontamentos
de Borriaud sobre o tema, dos quais destaco: "A cidade permitiu e generalizou
a experiência da proximidade: ela é o símbolo tangível e o quadro histórico do
estado de sociedade, esse estado de encontro fortuito imposto aos homens".
(Borriaud, 2009, p. 21).
Sou
atriz e a experiência de criar com a cidade diferia das minhas referências
artísticas anteriores (mas não menos importantes, vale dizer) do teatro
tradicional, me preparei para enxergar potência fora do campo da representação
já que buscava a estreiteza com o cotidiano. A esse respeito as letras de Paul
Ardenne e Renato Ferracini fomentaram a minha experimentação: a criação foca
mais na “presentação”, ação de estar presente, vigilante, do que na
representação (Ardenne, 2006) e pode provocar nas pessoas uma resposta que
conecta a arte ao cotidiano, aproximando-a da experiência real da vida. “A
experiência tem o potencial de dobrar o fluxo comum e de afetar, produzir um
nódulo, um aglomerado, um desvio potente de vida”. (FERRACINI, 2006, p. 37).
Envolvida
no processo de reivindicar a cidade como espaço para a arte, cito Medeiros: “A
arte que fugiu de casa: deixou a escola e foi aprender na rua, deseja ser
aberta à participação”. Nessa afirmação comparo o termo casa às
estruturas do teatro convencional e rua à cidade. Com o desejo de
redimensionar, reescrever e contaminar o trabalho, eu levava meus dois
banquinhos para um ponto movimentado, posicionava-os lado a lado e colocava
entre eles o pote de lápis e a caixa. Em seguida sentava, observava o movimento
e começava a apontar os lápis.
Podia
ser uma praça, um cruzamento, um ponto de ônibus, mas no 3 de abril do 100em1
dia foi na feirinha do bairro Cpa II, a minha feirinha de domingo. Instalei
meus lápis entre duas barracas, a de frutas e a do Zé do Feijão. Seu Zé acostumado
a me ver e perguntar se ia o de sempre,
1 kg de feijão fantasia que só a barraca dele vende, minutos depois de iniciar
os apontamentos dos lápis, talvez incomodado com a minha observação insistente,
veio especular o motivo de eu estar sentada ali. Enquanto respondia eu
continuava apontando os lápis. As aparas
caíam na caixa e só então soube que Zé do feijão se chama Antônio, tem dois
filhos já formados e não sabia que eu era artista. Uma freguesa veio pedir o
troco, então seu Antônio me devolveu o apontador com o lápis. Eu fechei a caixa
e metaforicamente guardei ali dentro a memórias da nossa conversa, equilibrei a
caixa no topo da cabeça e iniciei a caminhada arriscada de Apontamentos: Memórias em Percurso.
Cuidar
dos pés para que não tropeçassem nos buracos da rua transformada em comércio
pelas inúmeras barraquinhas era um desafio para a caixa equilibrada no alto da
minha cabeça. Flexionar os joelhos para desviar a cabeça dos fios quem com
gambiarra amarravam as tendas umas as outras formando uma enorme rede
decepadora de cabeças até para os não tão altos é que foram elas. A cada passo
um chamado a provar a melancia doce, ou aproveitar a promoção do abacaxi a dois
por 5. Porém a maior surpresa nessa polifonia a céu aberto foi o cantador das
pedras do bingo anunciando no microfone que conforme o combinado, não iria
avisar que estava acontecendo uma apresentação.
Assim
que finalizei o percurso e me preparava para mais uma ação das 100 planejadas
para presentear Cuiabá naquele dia, cruzei com outro grupo de colegas
performando ali, se deixando regar entre vendedores de pen drive já com
músicas, tênis Nike semioriginais ambos ocupando aquele espaço de troca,
compondo o contexto de nossa cidade. Ali atravessada pelas histórias
compartilhadas comigo entre um lápis e ação Regue do Comadança vi o
estreitamento entre arte e vida onde eu buscava pastel frito e caldo de cana. Nesse sentido encontrei em Borriaud faíscas
para alimentar essa observação: "As obras já não perseguem a meta de
formar realidades imaginárias ou utópicas, mas procuram constituir modos de
existência ou modelos de ação dentro da realidade existente, qualquer que seja
a escala escolhida pelo artista". (BORRIAUD, 2009).
Em
nenhum domingo antes daquele eu percebi uma troca tão potente de vivências. Eu
comumente saía da feira com a sacola carregada de verduras para a semana, mas
nesse domingo a sacola ficou cheia de material para o meu ofício. Nesse
contexto eu me via como a artista que participa da vida, como menciona
Medeiros:
O artista, no
mundo, é vida, participa da vida, traz vidas às pessoas-robôs, permeia os
porquês. O artista na rua(...) compõe e decompõe. A composição urbana evidencia
o delírio que a cidade-sociedade passa e passa correndo; sem ver, ouvir, tocar
ou massagear. (MEDEIROS, 2015, p. 2)
Legitimando
a cidade como o meu espaço de atuação para o referido trabalho, considerei
alguns termos que se referiam a produções envolvendo a cidade. Os principais
eram: intervenção e interferência urbana. No entanto, ambas as abordagens me
soavam agressivas e autoritárias demais. Vi na proposta da composição urbana
trazida por Beatriz Medeiros elementos de ação mais maleáveis: “Compor é
massagear os espaços, aí implantar desvios, rios, meandros antes invisíveis”.
(MEDEIROS, 2015).
Vendo no meu trabalho,
na performance “Regue” a suma importância da colaboração tanto do espaço quanto
do público para a realização da obra, trago para a pauta novamente Borriaud:
Ainda na
constituição da concepção do meu processo vi na possibilidade de uma arte
relacional uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações
humanas e seu contexto social mais do que a afirmação de um espaço simbólico,
autônomo e privado. (BORRIAUD, 2009, p. 19)
Nesse
sentido quando vi algumas das aparas de lápis espalhadas pelo chão, a água que
tinha regado os “pés de gente” dos garotos que fazem a performace “Regue” na
qual vestidos somente com uma calça jeans e uma muda de planta envolta no corpo
por plástico filme se deixam regar pelos transeuntes, evoquei Medeiros “A
performance de rua inscreve, escreve, escorre no corpo da cidade para aí deixar
sua cicatriz: sinal nomadizante, por oposição aos sinais normatizantes da
sociedade de controle, que torna possível uma dimensão poética. Censura,
ruptura, debate”. (MEDEIROS, 2005).
Registrei
o que pude com a câmera do celular, e me preparei para desenrolar mais
plástico, dessa vez para a performance “ Não cabe mais Gente” que também seria
“desanunciada” pelo locutor do bingo que ainda não tinha acabado.
Referências
Bibliográficas:
Leituras, S. M. E. "Notas sobre a experiência e o saber
de experiência." (2006).
de Gasperi, Marcelo Eduardo Rocco. "OEstreitamento ENTRE
O ESPECTADOR E A CENA CONTEMPORÂNEA."
Ferracini, Renato. "O corpo cotidiano e o corpo-subjétil:
relações." III Congresso Brasileiro De Pesquisa e Pós-graduação
em Artes Cênicas. 2003.
García Canclini, Néstor. Culturas híbridas: estrategias
para entrar y salir de la modernidad. México, 1989.
BOURRIAUD, Nicolas. "Estética
Relacional: tradução." Denise
Bottman–São Paulo Martins fontes (2006).
MEDEIROS, Beatriz; Composições urbanas,
http://grafiasdebiamedeiros.blogspot.com.br/2014/05/composicao-urbana-surpreensao-e.html
MEDEIROS, Beatriz: Iteração, participação e
performance, http://grafiasdebiamedeiros.blogspot.com.br/2014/05/composicao-urbana-surpreensao-e.html
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