quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Espaço para apedrejar ou gueto para se proteger


Wanderson Lana¹

Performance é aquilo que não foi nomeado, que carece de uma tradição, mesmo recente, que ainda não tem lugar nas instituições. Uma espécie de Matriz de todas as artes.
Jocken Gerz



Sábado à noite na Praça Popular na capital Mato-grossense que de popular o espaço tem pouca coisa. Com bares e restaurantes que investem na gastronomia e no entretenimento, os valores praticados não leva em consideração a possibilidade de receber todos os públicos. Dessa forma, a Praça Popular é um espaço onde a classe média cuiabana vai se divertir.
Formado, por várias ruas e uma praça que se apresenta de maneira quase obscura e desabitada, o ambiente encontra fervor dos bares que ocupam várias esquinas e nome praça acaba por ganhar contornos do grande espaço formado pelos comércios e não necessariamente pela praça desabitada nas noites de festejos. Talvez por ser o único espaço popular – onde não se cobra estacionamento, taxas e “cover” – o abandono e isolamento seja característico.

E foi nesse espaço de abandono, no coração da boemia cuiabana, que surge a performance “Espaço para apedrejar” organizado por atores e performances de Cuiabá e de outras cidades de Mato Grosso dentro do projeto “100em1dia Cuiabá”. Os processos de uma performance são organizadas através de um programa e não uma dramaturgia pré-estabelecida ou, até mesmo um jogo de improvisação como sugere Eleonora Fabião em sua obra  Performance e Teatro: Poéticas e Políticas da Cena Contemporânea (2009).

Chamo as ações performativas programas, pois, neste momento, esta me parece a palavra mais apropriada para descrever um tipo de ação metodicamente calculada, conceitualmente polida, que em geral exige extrema tenacidade para ser levada a cabo, e que se aproxima do improvisacional exclusivamente na medida em que não seja previamente ensaiada. Performar programas é fundamentalmente diferente de lançar-se em jogos improvisacionais. O performer não improvisa uma idéia: ele cria um programa e programa-se para realizá-lo (mesmo que seu programa seja pagar alguém para realizar ações concebidas por ele ou convidar espectadores para ativarem suas proposições).
(FABIÃO, 2009, p. 03)

Eleonora Fabião parte dos estudos de Deleuze e Guatarri (1999) “Como Criar Para si um Corpo sem Órgãos” onde é apresentado o termo programa como o “motor de experimentação”. Assim, para Fabião, “Um programa é um ativador de experiência” (2009, p.03). Fazendo um paralelo com a proposta da ação 100em1diaCuiabá é possível percebê-lo como um grande ativador de experiência. Reuniões e organizações foram feitas e cronogramas criados, mas a potencia tomada pelas ações que o compunham se revelaram apenas na realização de suas ações. Existiu um programa, o ativador, mas a experiência só pode ser mensurada através da própria experiência.
O programa da performance “Espaço para Apedrejar” constituía-se em travestir-se – tanto homens como mulheres – circular pelo espaço delimitado no chão – um retângulo com a possibilidade em abrigar até 10 pessoas – e em determinado momento ficar imóvel devido às piadas homofóbicas que começam a tocar no som acompanhadas de sorrisos gravados. À frente do retângulo onde circulam os performans, amontoados de frutas podres que sugerem às pessoas, que circulariam pelo ambiente, a possibilidade de transformar em ataque o preconceito, atirando-as nos corpos trans que sorriem e conversam muito numa ode de felicidade. Além disso, o encontro era presenteado com um churrasco de “maminha na manteiga” e “linguicinha”

A Praça Popular, pode ser quase entendido pela comunidade LGBT como Friendly que são espaços frequentados por heterossexuais, nos quais homossexuais são bem vindos (Simões, França, 2005). “Quase entendido” pelo fato de bem-vindo poder ser substituído por “tolerado”. A Praça popular é um espaço frequentado por heterossexuais onde homossexuais são tolerados mediante à um comportamento adequado para os héteros do espaço.


Foto: Amilton Martins, Praça Popular, 2016

O que poderia apresentar-se como um espaço para fisicalidade da homofobia e/ou da transfobia, se fortaleceu como um espaço protegido de qualquer austeridade. Um gueto fisíco e intelectual se formou e todos podiam caminhar protegidos.
O termo gueto é geralmente utilizado para definir a área de uma cidade ocupada por grupos de religião e nacionalidades minoritárias, termo de origem europeia surgido em decorrência do antissemitismo nazista. Hoje, gueto dá conta de espaços onde grupos minoritários são forçados a viver ou decidem viver para se sentirem seguros. O que temos na performance “Espaço para apedrejar” é o grupo que se fortalece em quantidade e em discurso dentro de um ambiente escuro e afastado dos outros espaços da região da praça, onde as discussões homoafetivas não só acontecem, como faz aproximar apenas pessoas que tenham opiniões semelhantes e que pertençam ou são interessadas nas demandas das minorias.

gueto é importante na medida em que proporciona um ambiente de contatos no qual as pressões da estigmatização da homossexualidade são momentaneamente afastadas ou atenuadas. Nessas condições, o “gueto” não somente amplia a oportunidade de encontrar parceiros e viver experiências sexuais, mas também pode contribuir decisivamente para reduzir os sentimentos de desconforto e culpa em relação à própria sexualidade, reforçar a auto-aceitação do desejo e, eventualmente, a disposição para “assumi-la” em âmbitos menos restritos.
(SIMÕES e FRANÇA, 2005)


Hoje, outras palavras substituem gueto como o termo meio, mas dizem respeito a mesma condição de proteção. Se ainda há luta para que esses espaços não sejam necessários, pois evidenciam ainda a grande potencia homofóbica existente na sociedade, os guetos se apresentam como possibilidade de segurança para que transeuntes não atirem frutas podres plantadas na potencia do corpo alheio.

A comunidade homossexual tem um programa construído para viver todos os seus dias numa performance em que não se pode perecer, independente se são tomates, lâmpadas, carros, que são atirados. Estar junto ainda é uma maneira de estar seguro.



Referências:


AQUINO, Fernando; MEDEIROS, Maria Beatriz de (Org.). Corpos Informáticos. Performance, corpo, política. Brasília: Editora do Programa de Pós Graduação em Arte, UNB, 2011.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Vol. 3. São Paulo: Editora 34, 1999

DELEUZE, Gilles. Espinosa, filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.

FABIÃO, E. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. In. Sala Preta, Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da ECA-USP, n. 8, 2008
FRANÇA, Isadora Lins; Sobre “guetos” e “rótulos”: tensões no mercado GLS na cidade de São Paulo: Cadernos Paguu: Campinas, 2007

GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. 2. ed. São Paulo, Perspectiva, 2009

SIMÕES, Júlio Assis Simões e FRANÇA, Isadora Lins; Do “gueto” ao mercado. Academia.EDU, 2005.

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¹ Wanderson Alex Moreira de Lana é Ator, Enecenador e Dramaturgo. Graduado em História e Especialista em História da América Latina Contemporânea pela UFMT. Meste em Estudos de Cultura Contemporânea pela UFMT e Doutorando em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCO/UFMT

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