sexta-feira, 15 de julho de 2016

A crise ecológica humana e a resposta do Movimento 100em1dia

Juliana Capilé

Cuiabá - Mato Grosso


O momento atual da condição humana no planeta aponta para uma crise sem precedentes. Não apenas o estilo de vida adotado pelos seres humanos está sendo ameaçado, como tudo indica que é esse estilo de vida o principal culpado desta crise. A maneira de viver no planeta é o que está em questão: nossas escolhas calcadas no conforto e na exploração levaram o planeta para uma crise ecológica de vários níveis. Quando Félix Guatari relaciona três ecologias que formam seu conceito de “ecosofia”, sendo; social, ambiental e subjetividade humana (2009), ele aponta nosso olhar para o ser humano, principal agente deste caos, como parte deste sistema ecológico que se encontra em desequilíbrio. O ser humano é o principal problema; ele adoece o planeta porque está doente.
As redes de parentesco tendem a se reduzir ao mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia, a vida conjugal e familiar se encontra frequentemente "ossificada" por uma espécie de padronização dos comportamentos, as relações de vizinhança estão geralmente reduzidas a sua mais pobre expressão... É a relação da subjetividade com sua exterioridade - seja ela social, animal, vegetal, cósmica — que se encontra assim comprometida numa espécie de movimento geral de implosão e infantilização regressiva. A alteridade tende a perder toda a aspereza. O turismo, por exemplo, se resume quase sempre a uma viagem sem sair do lugar, no seio das mesmas redundâncias de imagens e de comportamento.” (GUATTARI, 2001,p.7)

Pensar nessa subjetividade é, portanto, fundamental para observar a questão ecológica do tempo atual. Como recurso para refletir sobre o estilo de vida adotado pelos seres humanos até agora, Michel Serres (1990) na sua obra Contrato Natural, sugere que devemos ser anticartesianos e compreender de fato que não somos os senhores da natureza. A posição de Serres conta com a vontade humana de mudar atitudes em nome de um bem comum, fazendo referência à própria sobrevivência da espécie humana no contexto global, mas não apenas a sobrevivência física, como também a subjetiva, no que se refere ao mundo sensível. Neste ponto a questão mundial/global, que até então se preocupou com as variações climáticas e animais em extinção, se volta para o indivíduo e sua percepção; o sujeito como deflagrador de um processo social e político, que não só tem o humano como promovedor da crise ecológica, como também a principal vítima de toda a crise, e a cidade como lugar potencializador; tanto da crise quanto da necessidade de soluções para vencer a crise. 

"Pedras do Caminho"

Entender que uma cidade é formada por indivíduos que vivem nela pode parecer óbvio como construção de ideia, mas é uma equação que se perde com facilidade nos trajetos urbanos. Prontamente entendemos que a cidade é formada por rotinas e percursos repetidos cotidianamente, com fluxos cíclicos de movimentos que possuem hora para começar e para terminar, criando uma relação mais próxima de uma execução de funções ou cumprimento de tarefas do que um espaço de convívio social e político entre pessoas que vivem em um mesmo lugar.  É nítido que desde a arquitetura das cidades até seu ritmo cotidiano serve a uma lógica do capital, o que faz com que a cidade seja o local onde “ganhamos o nosso dinheiro”, onde trabalhamos e nos aprimoramos para sermos profissionais melhores, e não um lugar para viver nosso potencial humano. Nas palavras de Pedro Jacobi (1986), devemos reconquistar nosso “direito à cidade”, que foi construída como um “produto de consumo” e por isso, longe do alcance de quem não tem poder aquisitivo.
Dentre todos os pontos de observação do tema da ecologia, relaciono a política para observar a cidade por entender que o indivíduo social e a relação intersubjetiva são o problema e a solução. Considerando que a formação da comunidade política se baseia no “encontro discordante das percepções individuais”(Rancière,2009), a política está fundada sobre o mundo sensível e deve incentivar a multiplicidade das manifestações dentro da comunidade, se tiver pretensões de ser democrático de fato. Em uma comunidade as percepções individuais estão em constante tensão e formam dois mundos distintos: o mundo partilhado pela maioria, que está expresso pelas narrativas da grande mídia e serve ao capitalismo, e o mundo invisível dos “homens lentos”(Milton Santos, 2006), que se encontra inserido dentro do mundo comum, mas não é nem retratado e nem  ouvido. A política, segundo Rancière, é feita da relação entre esses “mundos fraturados” que se baseia na percepção de cada indivíduo e sua noção de mundo. Hanna Arent (1987) observa que os traços de visibilidade dos indivíduos no espaço público assegura-lhes o pertencimento a um mesmo espaço social, corroborando a necessidade de partilha deste espaço e seu constante dissenso e consenso para uma atividade política satisfatória.
"Ocupação do viaduto da UFMT com balanços"
 É sob essa perspectiva que observo as ações desenvolvidas durante a ação global 100em1Dia, realizado no dia 3 de abril de 2016 na cidade de Cuiabá, como uma atividade política que traz uma resposta à crise ecológica. Desde o primeiro minuto do dia 3 até seu final, os indivíduos da cidade realizaram ações de cidadania e arte relacionadas com afetividade, cuidado, beleza, sociabilidade, meio ambiente, urgências, cultura, programando e executando essas ações durante todo o dia, transmitidas ao vivo na rádio local Assembleia. Neste dia a cidade experimentou uma quebra na rotina calcada na subjetividade capitalística e praticou política se utilizando da relação entre “mundos fraturados”. As ações contavam com voluntários para acontecerem, o que provocava a interrelação entre pessoas de diferentes percepções individuais, com um objetivo em comum.
"Reviver São Gonçalo"
Os diferentes lugares ocupados por cada indivíduo social que compartilha um ambiente comum que é uma cidade e que configura na constante tensão entre o dissenso e o consenso não resulta em uma comunicação interativa imediata, ou seja, não estamos trocando informações e experiências com outros indivíduos da cidade somente porque compartilhamos o mesmo espaço-tempo. Trocamos informações e experiências quando, por algum motivo, somos impelidos a nos confrontar/relacionar com o outro; do contrário estamos munidos de artifícios e mecanismos de defesa que preserva nossa existência e nosso modo de ver o mundo ao mesmo tempo em que nos mantém afastados da realidade da qual não queremos compartilhar. Quando um indivíduo se propõe a recuperar o pátio de um hospital psiquiátrico e recruta voluntários para colaborar, ou decide pendurar balanços embaixo de um viaduto, estamos diante de uma experiência que desafia a lógica capitalística que move a cidade e promove uma interação entre os indivíduos. Habermas (2002) cita três formas, bastante próximas das três ecosofias de Guattari, de “abalar o entendimento entre os sujeitos racionais”, são eles: a experiência externa do mundo das coisas e acontecimentos; a experiência intrasubjetiva com nossa própria natureza interior, do nosso corpo, necessidades e sentimentos; e a experiência intersubjetiva do mundo solidário, que é a relação entre sujeitos. Com isso Guattari e Habermas sugerem que  partilhar o espaço comum buscando dissolver os muros invisíveis que apartam os indivíduos é parte fundamental do processo de renovação de velhos conceitos de mundo. As ações do 100em1DiaCuiabá abriram um espaço para refletir o modo de viver na cidade utilizando-se dessas formas, ao mesmo tempo em que identifica a transformação necessária em nível social, partindo da  vontade humana de mudar atitudes em nome de um bem comum, como pensava Serres. Desta forma, eventos como o 100em1DiaCuiabá criam “comunidades de partilha” (Rancière,2000) pois promovem espaços de experimentação e de tentativas de fazer com que realidades antes não imaginadas ou desconsideradas passem a serem percebidas, sem ser incorporadas ao ritmo “normal” da cidade. O fato das ações acontecerem somente por um dia reforça essa característica; um dia em que as pessoas passearam pelas ruas de sombrinha; um dia de recolher o lixo deixado nas margens de um rio; um dia de se maquiar e se vestir extravagantemente durante a madrugada em uma praça pública. Durante esse dia, abre-se uma fresta entre os mundos e podemos ver o lado “invisível” e “lento” da cidade, criando o momento de reconfigurar o que consideramos “comum”. Nos demais dias que se segue, a cidade não será a mesma para a sensibilidade de quem participou das ações, e nem para quem viu acontecer, porque sua percepção individual do espaço-tempo compartilhado estará alterada.  Mesmo que por apenas um dia, a ação política já se estabeleceu, pois quando o indivíduo pertencente a uma determinada classe social e nível de instrução, que realiza um determinado trajeto diário pela cidade se permite compartilhar do espaço de um viaduto com os moradores de rua, estabelece-se uma fratura entre esses mundos. É a experiência sensorial que se interpõe à experiência racional, pois os indivíduos não estão debatendo suas realidades e sim, vivenciando outro ritmo na cidade. O que torna essa experiência potente é o encontro entre as percepções individuais que forma ou ativa uma comunidade política.
"Flash Mob Mercado do Porto"

A crise ecológica mundial está apenas em seus primeiros estágios, podemos perceber isso; mas, identificar a crise humana como centro gerador de toda questão global desloca a responsabilidade para o indivíduo e sua forma de pensar em si e de aceitar o outro. Buscar melhorar o ser humano que somos é parte da análise do problema e o movimento mundial 100em1Dia oferece uma resposta na busca de soluções pois se caracteriza como uma convocação à ação e possibilita ao indivíduo da cidade canalizar sua necessidade de mudança, se assumindo como cidadão e portanto, como transformador e agente do lugar que habita. A mensagem de um movimento como esse é que a solução está em nossas mãos.
"100 balões para Cuiabá"


BIBLIOGRAFIA

ARENT,Hanna. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
CASTRO, Josué de. Geografia da fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 10. ed. Rio de Janeiro: Antares, 1983.
GUATTARI, Felix. As três ecologias. 20ª ed. Trad. Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 2009.
HABERMAS, J. (2002). Ações, atos de fala, interações mediadas pela linguagem e mundo da vida. In:______. Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro
JACOBI, Pedro. A Cidade e os Cidadãos. Lua Nova:Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 4, vol. 02, mar. 1986.
MARQUES, Ângela. Comunicação, estética e política: a partilha do sensível promovida pelo dissenso, pela resistência e pela comunidade. Revista Galáxia, São Paulo, n. 22, p. 25-39, dez. 2011.
RANCIÈRE, Jacques. Política da arte. Tradução Mônica Costa Netto. Urdimento, Santa Catarina - Florianópolis (UDESC), v. 1, n. 15, p. 45-59. 2010.
_____________. A Partilha do Sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org.; Editora 34, 2009.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
SERRES, Michel. Contrato Natural. Instituto Piaget: Lisboa, 1990.

Nenhum comentário:

Postar um comentário