Juliana Capilé
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Cuiabá - Mato Grosso |
O momento atual da condição humana no planeta
aponta para uma crise sem precedentes. Não apenas o estilo de vida adotado
pelos seres humanos está sendo ameaçado, como tudo indica que é esse estilo de
vida o principal culpado desta crise. A maneira de viver no planeta é o que
está em questão: nossas escolhas calcadas no conforto e na exploração levaram o
planeta para uma crise ecológica de vários níveis. Quando Félix Guatari
relaciona três ecologias que formam seu conceito de “ecosofia”, sendo; social,
ambiental e subjetividade humana (2009), ele aponta nosso olhar para o ser
humano, principal agente deste caos, como parte deste sistema ecológico que se
encontra em desequilíbrio. O ser humano é o principal problema; ele adoece o
planeta porque está doente.
“As
redes de parentesco tendem a se reduzir ao mínimo, a vida doméstica vem sendo
gangrenada pelo consumo da mídia, a vida conjugal e familiar se encontra frequentemente
"ossificada" por uma espécie de padronização dos comportamentos, as
relações de vizinhança estão geralmente reduzidas a sua mais pobre expressão...
É a relação da subjetividade com sua exterioridade - seja ela social, animal,
vegetal, cósmica — que se encontra assim comprometida numa espécie de movimento
geral de implosão e infantilização regressiva. A alteridade tende a perder toda
a aspereza. O turismo, por exemplo, se resume quase sempre a uma viagem sem
sair do lugar, no seio das mesmas redundâncias de imagens e de comportamento.” (GUATTARI,
2001,p.7)
Pensar nessa
subjetividade é, portanto, fundamental para observar a questão ecológica do
tempo atual. Como recurso para refletir sobre o estilo de vida adotado pelos
seres humanos até agora, Michel Serres (1990) na sua obra Contrato Natural, sugere que devemos ser anticartesianos e
compreender de fato que não somos os senhores da natureza. A posição de Serres conta
com a vontade humana de mudar atitudes em nome de um bem comum, fazendo
referência à própria sobrevivência da espécie humana no contexto global, mas
não apenas a sobrevivência física, como também a subjetiva, no que se refere ao
mundo sensível. Neste ponto a questão mundial/global, que até então se
preocupou com as variações climáticas e animais em extinção, se volta para o
indivíduo e sua percepção; o sujeito como deflagrador de um processo social e
político, que não só tem o humano como promovedor da crise ecológica, como
também a principal vítima de toda a crise, e a cidade como lugar
potencializador; tanto da crise quanto da necessidade de soluções para vencer a
crise.
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"Pedras do Caminho" |
Entender
que uma cidade é formada por indivíduos que vivem nela pode parecer óbvio como
construção de ideia, mas é uma equação que se perde com facilidade nos trajetos
urbanos. Prontamente entendemos que a cidade é formada por rotinas e percursos
repetidos cotidianamente, com fluxos cíclicos de movimentos que possuem hora
para começar e para terminar, criando uma relação mais próxima de uma execução
de funções ou cumprimento de tarefas do que um espaço de convívio social e
político entre pessoas que vivem em um mesmo lugar. É nítido que desde a arquitetura das cidades
até seu ritmo cotidiano serve a uma lógica do capital, o que faz com que a
cidade seja o local onde “ganhamos o nosso dinheiro”, onde trabalhamos e nos
aprimoramos para sermos profissionais melhores, e não um lugar para viver nosso
potencial humano. Nas palavras de Pedro Jacobi (1986), devemos reconquistar
nosso “direito à cidade”, que foi construída como um “produto de consumo” e por
isso, longe do alcance de quem não tem poder aquisitivo.
Dentre todos os
pontos de observação do tema da ecologia, relaciono a política para observar a
cidade por entender que o indivíduo social e a relação intersubjetiva são o
problema e a solução. Considerando que a formação da comunidade política se
baseia no “encontro discordante das percepções individuais”(Rancière,2009), a política
está fundada sobre o mundo sensível e deve incentivar a multiplicidade das
manifestações dentro da comunidade, se tiver pretensões de ser democrático de
fato. Em uma comunidade as percepções individuais estão em constante tensão e
formam dois mundos distintos: o mundo partilhado pela maioria, que está
expresso pelas narrativas da grande mídia e serve ao capitalismo, e o mundo
invisível dos “homens lentos”(Milton Santos, 2006), que se encontra inserido
dentro do mundo comum, mas não é nem retratado e nem ouvido. A política, segundo Rancière, é feita
da relação entre esses “mundos fraturados” que se baseia na percepção de cada
indivíduo e sua noção de mundo. Hanna Arent (1987) observa que os traços de
visibilidade dos indivíduos no espaço público assegura-lhes o pertencimento a
um mesmo espaço social, corroborando a necessidade de partilha deste espaço e seu
constante dissenso e consenso para uma atividade política satisfatória.
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"Ocupação do viaduto da UFMT com balanços" |
É
sob essa perspectiva que observo as ações desenvolvidas durante a ação global
100em1Dia, realizado no dia 3 de abril de 2016 na cidade de Cuiabá, como uma
atividade política que traz uma resposta à crise ecológica. Desde o primeiro
minuto do dia 3 até seu final, os indivíduos da cidade realizaram ações de
cidadania e arte relacionadas com afetividade, cuidado, beleza, sociabilidade,
meio ambiente, urgências, cultura, programando e executando essas ações durante
todo o dia, transmitidas ao vivo na rádio local Assembleia. Neste dia a cidade
experimentou uma quebra na rotina calcada na subjetividade capitalística e
praticou política se utilizando da relação entre “mundos fraturados”. As ações
contavam com voluntários para acontecerem, o que provocava a interrelação entre
pessoas de diferentes percepções individuais, com um objetivo em comum.
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"Reviver São Gonçalo" |
Os diferentes lugares ocupados por cada indivíduo social que compartilha um ambiente comum que é uma cidade e que configura na constante tensão entre o dissenso e o consenso não resulta em uma comunicação interativa imediata, ou seja, não estamos trocando informações e experiências com outros indivíduos da cidade somente porque compartilhamos o mesmo espaço-tempo. Trocamos informações e experiências quando, por algum motivo, somos impelidos a nos confrontar/relacionar com o outro; do contrário estamos munidos de artifícios e mecanismos de defesa que preserva nossa existência e nosso modo de ver o mundo ao mesmo tempo em que nos mantém afastados da realidade da qual não queremos compartilhar. Quando um indivíduo se propõe a recuperar o pátio de um hospital psiquiátrico e recruta voluntários para colaborar, ou decide pendurar balanços embaixo de um viaduto, estamos diante de uma experiência que desafia a lógica capitalística que move a cidade e promove uma interação entre os indivíduos. Habermas (2002) cita três formas, bastante próximas das três ecosofias de Guattari, de “abalar o entendimento entre os sujeitos racionais”, são eles: a experiência externa do mundo das coisas e acontecimentos; a experiência intrasubjetiva com nossa própria natureza interior, do nosso corpo, necessidades e sentimentos; e a experiência intersubjetiva do mundo solidário, que é a relação entre sujeitos. Com isso Guattari e Habermas sugerem que partilhar o espaço comum buscando dissolver os muros invisíveis que apartam os indivíduos é parte fundamental do processo de renovação de velhos conceitos de mundo. As ações do 100em1DiaCuiabá abriram um espaço para refletir o modo de viver na cidade utilizando-se dessas formas, ao mesmo tempo em que identifica a transformação necessária em nível social, partindo da vontade humana de mudar atitudes em nome de um bem comum, como pensava Serres. Desta forma, eventos como o 100em1DiaCuiabá criam “comunidades de partilha” (Rancière,2000) pois promovem espaços de experimentação e de tentativas de fazer com que realidades antes não imaginadas ou desconsideradas passem a serem percebidas, sem ser incorporadas ao ritmo “normal” da cidade. O fato das ações acontecerem somente por um dia reforça essa característica; um dia em que as pessoas passearam pelas ruas de sombrinha; um dia de recolher o lixo deixado nas margens de um rio; um dia de se maquiar e se vestir extravagantemente durante a madrugada em uma praça pública. Durante esse dia, abre-se uma fresta entre os mundos e podemos ver o lado “invisível” e “lento” da cidade, criando o momento de reconfigurar o que consideramos “comum”. Nos demais dias que se segue, a cidade não será a mesma para a sensibilidade de quem participou das ações, e nem para quem viu acontecer, porque sua percepção individual do espaço-tempo compartilhado estará alterada. Mesmo que por apenas um dia, a ação política já se estabeleceu, pois quando o indivíduo pertencente a uma determinada classe social e nível de instrução, que realiza um determinado trajeto diário pela cidade se permite compartilhar do espaço de um viaduto com os moradores de rua, estabelece-se uma fratura entre esses mundos. É a experiência sensorial que se interpõe à experiência racional, pois os indivíduos não estão debatendo suas realidades e sim, vivenciando outro ritmo na cidade. O que torna essa experiência potente é o encontro entre as percepções individuais que forma ou ativa uma comunidade política.
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"Flash Mob Mercado do Porto" |
A
crise ecológica mundial está apenas em seus primeiros estágios, podemos
perceber isso; mas, identificar a crise humana como centro gerador de toda
questão global desloca a responsabilidade para o indivíduo e sua forma de
pensar em si e de aceitar o outro. Buscar melhorar o ser humano que somos é
parte da análise do problema e o movimento mundial 100em1Dia oferece uma
resposta na busca de soluções pois se caracteriza como uma convocação à ação e
possibilita ao indivíduo da cidade canalizar sua necessidade de mudança, se
assumindo como cidadão e portanto, como transformador e agente do lugar que
habita. A mensagem de um movimento como esse é que a solução está em nossas
mãos.
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"100 balões para Cuiabá" |
BIBLIOGRAFIA
ARENT,Hanna. A Condição Humana.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
CASTRO, Josué de. Geografia da
fome: o dilema brasileiro: pão ou aço. 10. ed. Rio de Janeiro: Antares, 1983.
GUATTARI, Felix. As três ecologias. 20ª ed. Trad. Maria Cristina F.
Bittencourt. Campinas: Papirus, 2009.
HABERMAS, J. (2002). Ações, atos
de fala, interações mediadas pela linguagem e mundo da vida. In:______.
Pensamento Pós-Metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro
JACOBI, Pedro. A Cidade e os
Cidadãos. Lua Nova:Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 4, vol. 02,
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MARQUES, Ângela. Comunicação,
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resistência e pela comunidade. Revista Galáxia, São Paulo, n. 22, p. 25-39,
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RANCIÈRE, Jacques. Política da
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_____________. A Partilha do
Sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: EXO
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SANTOS, Milton. A Natureza do
Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2006.
SERRES, Michel. Contrato Natural.
Instituto Piaget: Lisboa, 1990.
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