Gabriel
Pereira Faria[1]
Cem em um dia (100Em1Dia) é um projeto que
possibilita não só os encontros, mas a relação com o mundo para pensar,
experimentar e reencontrar a cidade enquanto lugar e não apenas como espaço. O
espaço urbano tem que se converter num lugar de pertencimento, aonde propicia
encontros, relações de vida com o mundo. O imediatismo do trabalho, as
exigências sociais, a imposição econômica e a crise que se instala, criam
sujeitos distantes da cidade enquanto lugar de pertencimento e a explora
somente como espaço urbano. Algo a ser usado e/ou até mesmo agredido.
O projeto é uma provocação para perceber a cidade, captar
os pequenos detalhes quase imperceptíveis. Valorizar os pequenos gestos. A arte
é provocativa e nos tira o chão, ela tem essa capacidade de colocar em evidência
algo que era marginalizado. As intervenções do cem em um dia (100Em1Dia) foram
experiências únicas, sentida no corpo, que acima de tudo, expressa vida. Tal intervenção
ou acontecimento permite, ou permitiu pensar e agir na cidade como lugar de
pertencimento e, não como um mero espaço.
Este pensar e agir no espaço urbano para se
converter num lugar de pertencimento não pode ser a partir da concepção
Platônica, Cartesiana e até mesmo, Kantiana; mas, sim, a partir das noções
espinosana, nietzschiana, Freudiana. Não existem duas coisas autônomas, um
corpo que deseja e a alma/razão cheia de ideias que controla o corpo. O que
existe é o corpo, o que se pensa tem a ver com o que se sente. O pensar é uma
consequência do sentir. Tudo o que vem a cabeça tem como componente explicativo
as sensações do corpo. Isso quer dizer que não só a atividade intelectiva é
corporal como a consciência que o sujeito tem da atividade intelectiva de si é
definida pelos afetos. Aquilo que o sujeito pensa é uma espécie de subproduto
de um subproduto das forças vitais de si mesmo. É isso que Freud chamou de
subconsciente inspirado em Espinosa e Nietzsche. Grande parte das coisas que o
sujeito pensa não está na sua consciência, está no subconsciente freudiano ou
no corpo, nas forças vitais espinosano e nietzschiano; o trabalho da razão é um
trabalho justificador dos afetos.
Vida para Espinosa é um conjunto de relações; viver
é estar em relação com o mundo. Um corpo vive na exata intensidade, na exata
quantidade com a qual se relaciona. Porque viver é relacionar-se e, no caso,
depende das relações que se tem mantido com o mundo, se estas relações têm
trazido efeitos positivos. Todos se relacionam com o mundo e o mundo se
relaciona com todos. A questão é se nesse relacionar dar-se-á vasão aos afetos
do corpo ou, dar-se-á vasão a alma/razão entendendo que esta governa o corpo e,
portanto, encontra-se com o mundo de forma superficial, corriqueira, sempre
racional, dominado pela rotina do fazer no cotidiano.
Expressão dos afetos que é muitas vezes condenado na
sociedade com suas normas, regras. A razão nomeia, coloca tudo em ordem, impõe
estabilidade. O mundo como espaço urbano se revela numa impessoalidade com o
outro, com os pequenos detalhes, e ainda, os fatos ou acontecimentos são
marginalizados. No que concerne ao corpo, ao orgânico as relações se tornam
mais sensíveis, promove-se o encontro com o real e não com as normas institucionalizadas.
Reconciliar-se com o real é deixar se afetar pelo mundo que é, que existe; e
não pelo mundo que o sujeito imagina. Deve-se apostar no mundo tal como ele se
apresenta diante de nós. Isso é prestar atenção no mundo. “Esperar um pouco
menos, lamentar um pouco menos, amar um pouco mais”,[2]
isso é reconciliação com o real, é o que Espinosa chama de beatitude.
Ao se relacionar com o mundo afetamos e somos
afetados pelos outros corpos orgânicos ou não. Nestes encontros o sujeito muda
e, os corpos ou o mundo também mudam. O sujeito muda o mundo, e o mundo muda o
sujeito. Um transforma o outro, houve ou haverá uma passagem de uma situação
para a outra. Isso é vida para Espinosa. O afeto é a interpretação que o corpo
dá para essa transformação. Ou seja, o afeto é o que o sujeito sente a partir
do efeito que o mundo produz sobre ele. O efeito é objetivo, ou seja, ao encontrar
com o mundo gera efeito. O afeto é subjetivo, ou seja, o que o sujeito sentiu;
qual paixão suscitou a partir do efeito, ou do resultado do encontro com o
mundo. O afeto é como o corpo sente as transformações do mundo. É a tradução em
sensações do efeito objetivo que o mundo produz sobre o sujeito ou sobre o
corpo.
As manifestações dos sentimentos em relação aos
efeitos produzidos mediante ao encontro com o mundo, nos dá a real noção da
nossa vida. Os encontros têm uma tradução subjetiva, afetos. Os afetos são bons
ou ruins. Todo o corpo é afetado por um encontro. O mundo transforma o sujeito
a todo o momento, mas há algo que permanece, no caso, a essência. Esta essência
Espinosa chama: potência de agir. A potência de agir é a nossa energia vital; a
quantidade de energia que o sujeito disponibiliza para viver num determinado
instante. Tem momentos que estamos com a auto-estima baixa e outra alta. Tem
encontros com o mundo que melhoram a energia vital e que aumentam a tua
potência de agir. De certa maneira para Espinosa, os afetos são sempre uma
transformação da energia vital; e é por isso que os afetos podem ser bons ou
ruins.
O afeto é bom quando há ganho de energia vital. O
afeto é ruim quando há perda de energia vital. O ganho de energia vital é a
passagem para um estado mais potente e perfeito do próprio ser do indivíduo,
este afeto é denominado de alegria. A perda de energia vital é a passagem para
um estado menos potente, menos perfeito de o próprio ser do sujeito, este afeto
é denominado de tristeza. As alegrias e as tristezas vão acontecendo ao sabor
dos encontros com o mundo, ao sabor das relações com o mundo, ao sabor da vida.
Tem vida que alegra, tem vida que entristece; tem mundo que alegra, tem mundo
que entristece.
Para Espinosa a perfeição é uma espécie de
tendência. A tendência que proporciona alegria. Se o sujeito é a sua potência
de agir, logo, é a sua energia vital, porque sem ela o sujeito não é, não
existe. Quando se alegra, dentro do mesmo corpo, aparentemente o mesmo corpo,
se tem mais energia do sujeito no sujeito, mais energia vital. Quando se
entristece tem menos do sujeito no sujeito, tem menos energia, tem menos
recurso para viver, tem menos resistência contra o mundo.
O mundo é bom quando nos alegra e ruim quando nos
entristece. O amor para Espinosa é aquilo que sentimos pelo mundo quando ele
nos alegra. O amor é coisa do corpo, de célula, é vibração, energia. O amor é
como alegria, questão de instante, ama quando alegra, odeia quando entristece.
O matrimônio obriga as pessoas amarem para sempre. Os afetos debocham das
instituições. A vida, o corpo institucionalizado por meio de ideologias de
comportamentos padrão enrijece o corpo, blasfemam contra o mundo da vida,
contra os fluxos existenciais; e fazem acreditar que o amor é para sempre. Indo
na contramão das oscilações de potência, na contramão das alegrias e tristezas.
Para Espinosa, somos energia que luta demais para continuar existindo.
Os encontros com o mundo são inéditos, nunca
existiram antes. Encontro é instante de vida, por isso nunca existiram antes. O
ineditismo da vida é garantido por duas coisas: primeiro, o sujeito nunca foi o
que é agora; segundo, o mundo nunca foi aquele que o sujeito encontra naquele
instante. Se lançarmos mão da lógica fica um pouco mais claro: se a vida “A”
encontra “B”, e “A” nunca foi “A” e “B” nunca foi “B”, o encontro de “A” e “B”
nunca aconteceu antes e nunca se repetirá. Porque “A” não vai ser mais “A” de
novo e o “B” nunca vai ser “B” de novo, logo, a vida é uma sucessão
ininterrupta de ineditismo.
Os encontros com o mundo é valorizar o instante, é
dar vazão aos afetos. Isso sugere que possamos dar mais atenção ao mundo que
está bem diante de nós e menos importância para o mundo ideal, para o mundo que
o sujeito gostaria que fosse ou o que não fosse. Por isso a frase Estóica:
esperar um pouco menos e amar um pouco mais. Amar o mundo como ele é: amor
fati. Amor pelo mundo como ele é, é a reconciliação com o real na alegria e na
tristeza; não no temor e na esperança, pois, estas são atributos de
idealidades.
Os pensadores idealistas que tem uma estrutura
religiosa para pensa o mundo, pensam em melhorá-lo, em mudá-lo. Entende que a
vida boa é uma vida engajada num processo de transformação. Coloca a razão como
superior ao corpo. A razão acessa o mundo inteligível e nomeia, organiza o
mundo sensível que é o campo corpo. Na razão tudo é organizado, não tem espaço
para as mudanças. Logo, projeta um mundo ideal a ser alcançado; sejam as
doutrinas religiosas ou políticas, sejam os padrões de comportamentos ou a
moral, sejam os afetos institucionalizados.
Há os filósofos que propõe que o mundo inteligível e
o sensível sejam um mundo só. O que se pensa tem a ver com o que o corpo sente,
com as sensações, os afetos. O corpo que para os idealistas é marginalizado;
para os filósofos imanentes ao mundo é o centro da vida, das pulsões, dos
afetos. Para estes, a vida boa pressupõe uma reconciliação com o real.
A formula para a vida é amor fati, segundo
Nietzsche. Amor fati é amor pelo mundo como ele é. Não se trata de tolerar um
mundo, mas amá-lo como ele é, ou seja, amar o real com todas as suas
contingências, nos encontros e deixar expressar os afetos. O mundo é o que está
na sua frente, é da forma como se apresenta, querer que ele fosse diferente se
trata de querer melhorá-lo, já é uma visão institucionalizada, uma visão
religiosa do pensamento. Ou seja, já está blasfemando contra o mundo da terra a
favor de uma transcendência.
Aos idealistas, Nietzsche, chama-os de niilista
justamente por serem geralmente tomados por forças reativas. A moral é um
exemplo clássico de forças reativas. Aos que afirmam a vida terrena, do corpo,
o mundo da vida, o autor de Zaratustra, chama-os de super-homem por serem
tomados de forças ativas. O super-homem é quem não precisa de muletas
metafísicas, ou seja, de valores transcendentes para tornar a vida suportável.
A arte expressa o mundo da vida, o mundo orgânico e
imanente, logo, as forças ativas, os afetos do corpo nos encontros com a vida,
com o real denuncia uma afirmação do mundo tal como ele é. A arte em Nietzsche
tem a ver com o artista. A arte não se avalia pelo o que o artista fez, nem
pelo suporte, nem pela matéria trabalhada, nem mesmo pela ação do artista. A
arte se define pelo tipo de força que permite a manifestação do artista. As
forças ativas são as que dão conta das genuínas pulsões. A arte é toda
manifestação humana determinada por uma força ativa. Por isso que arte pode ser
qualquer manifestação, porque ali colocam as pulsões, os desejos, as convicções
mais genuínas; ali se expressa afetos, ou seja, os encontros com o mundo
produzem afetos genuínos.
A arte é a expressão dos afetos, ou seja, é a
manifestação da potência. Toda manifestação artística exige que as forças do
mundo se reorganizem. Agir artisticamente é provocativo porque mexe com valores
sedimentados, com doutrinamento do corpo e da vida, mexe com idealidade de
vida, moral, normas e regras petrificadas, ou seja, verdades sedimentadas.
O artista afasta das verdades do mundo. A verdade é
alardeada pelos idealistas, porque é eterna e não muda, assim freia o mundo e o
mundo é movimento, mudança. As verdades engessam o mundo. Quem não suporta a
vida no mundo busca verdades para engessá-lo, para Pará-lo, para domesticá-lo e
quem quer parar o mundo é porque não suporta o mundo na sua contingência, nas
suas mudanças. Os seus encontros com o mundo são sempre institucionalizados,
logo, marginalizados em favor da razão e de verdades, em detrimento do corpo e
dos afetos.
De fato o artista afasta da verdade porque ao
afastar da verdade a arte nos coloca no mundo da vida aonde somos transito de
energia num mundo caótico de energias que entre devoram, e só ai a vida terá a
chave de manifestar a nossa intensidade, a nossa potência num mundo que é
mudança, transformação constante. Os encontros são únicos e genuínos, os afetos
são sempre inéditos. A beleza é uma conseqüência da arte; será belo tudo aquilo
que genuinamente transparecer e indicar o pulsional, o
energético, as vísceras, ou seja, nas entranhas do corpo, os afetos que se
expressão dos encontros com o mundo que está em constante mudança, em constante
transformação.
REFERÊNCIAS
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Os pensadores: obras incompletas. Tradução e notas: Rubens Rodrigues
Torres Filho; posfácio: Antônio Candido. 5º
edição, vol. I e II. São Paulo: Nova cultura 1991.
ESPINOSA, Bento. Os pensadores. Tradução: Marilena de
Souza Chaui. Editora: abril cultural, 3º edição. São Paulo: Abril cultural
1983.
ESPINOSA, Bento. Ética.Introdução, notas e posfácio:
Joaquim de Carvalho. Lisboa: Relógio D´água Editores, 1992.
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