terça-feira, 12 de julho de 2016

Cheiro de Infância: Uma Experiência Inesperada

Valéria Pereira Moreira[1]
José Serafim Bertoloto[2]




Centro Cultural/UFMT, Foto: Valéria Pereira Moreira



       A realização dos eventos Cidade Possível e 100em1diacuiabá, propostos pelo ECCO/UFMT e coordenados pela Profª Drª Maria Thereza Azevedo, provocaram uma imensa agitação na cidade, bem como, em nós alunos do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea. Foram inúmeras reuniões em diversos locais da cidade, com os organizadores das ações que seriam realizadas no dia 03 de abril de 2016, em Cuiabá-MT, num domingo ensolarado. Esta atividade integrou o evento Cidade Possível, que foi realizado no decorrer da semana de 04 a 07 de abril, quando aqui estiveram vários pesquisadores, estudiosos brasileiros e estrangeiros da Cultura Contemporânea, que ministraram as conferências, assim como também, vários grupos de pesquisas da UFMT apresentaram os trabalhos desenvolvidos por professores e alunos, nos Colóquios.
        O 100em1diacuiabá foi originalmente criada em Bogotá, na Colômbia. Para Cuiabá ser inserida nos registros oficiais da organização, foram realizadas reuniões, teleconferências e diversos entendimentos, até que todos os detalhes que compõem o evento fossem selados pelos organizadores, para inserir Cuiabá-MT, no registro universal no dia 03 de abril de 2016.
       Foi muito difícil para as pessoas entenderem o que era o evento, que ele seria realizado somente no dia 03 de abril (domingo), e que deveriam ser registradas cem ou mais ações, somente num dia, no portal eletrônico. Alguns procuraram as atividades no sábado, no dia anterior, outros perguntavam se as ações seriam realizadas no mês seguinte.
       No decorrer das aulas da disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas: Estéticas Emergentes na Cidade, ministrada pela Profª Drª Maria Thereza, provocaram reflexões sobre os conceitos da arte contemporânea, dos movimentos sociais, das ações coletivas, das singularidades. Todos os dias, a cada aula, descobria-se novas maneiras de pensar, de viver e de sentir, especialmente nas relações com minha cidade, Cuiabá. Em conversas com o amigo o Prof. Dr. José Serafim Bertoloto, decidimos oferecer às pessoas, pipoca e suco de caju, fruto da terra, propomos a ação Cheiro de Infância, no 100em1diacuiabá.
Cuiabá é uma cidade muito quente, e a combinação do salgado com o doce poderia proporcionar uma sensação agradável nas pessoas, uma forma de aproximar a gente desconhecida, estabelecer amizade, conexões afetivas com os desconhecidos, em se tratando de Cuiabá, uma cidade hospitaleira, que sempre recebeu gente de lugares dos mais diversos, inclusive do exterior.
            A ação afetiva foi realizada no Centro Cultural, situado na Rua Alziro Zarur, Bairro Boa Esperança, no Campus Universitário da UFMT, no decorrer da tarde caiu uma forte chuva que impossibilitou o acesso das pessoas ao local, estiveram ali apenas uma família que se abrigou da chuva, nós servimos as guloseimas, as crianças ficaram encantadas.


Centro Cultura/UFMT, Av. Alziro Zarur, Foto: Valéria Pereira Moreira

      

Família Degustando Guloseimas, Foto: Valéria Pereira Moreira

       Mediante a ausência total de público, fomos informados pela fotógrafa Fernanda que naquela mesma tarde, no Instituto de Linguagens, estava acontecendo outra ação, Jogos Lúdicos, partimos para aquele local e servimos nossas guloseimas para os jovens que ali estavam, a quantidade de pipoca e suco era muita. Imediatamente, propus ao Serafim, migrarmos para o ponto de ônibus, na Av. Fernando Corrêa para distribuirmos as guloseimas para os transeuntes, que usavam o transporte público. Ficamos do lado de dento da UFMT, pois o portão que dá acesso à avenida estava fechado com cadeado, nos instalamos na cerca que delimita o espaço da UFMT e a calçada, começamos a chamar as pessoas para receberem a pipoca e o suco. A ação foi muito rápida, passageira, pois as pessoas se serviam no curto espaço de tempo, conforme os ônibus chegavam no ponto.  
 Ao convocarmos os passageiros, rompemos fronteiras, nas duas vias, nós e os participantes, que foram surpreendidos por nós dois, inesperadamente, num fim de tarde de domingo, após uma chuva torrencial, para degustarem as guloseimas que não estavam preparados para recebê-las, naquele instante, instalou-se um estranhamento.
Este estranhamento vivido por nós e pelos transeuntes na Av. Fernando Corrêa da Costa, estabeleceu-se um contato afetivo com aquelas pessoas que inesperadamente, foram abordadas por desconhecidos, oferecendo elementos de elo de ligação entre o mundo real e o afeto criativo.
Para Olga Guerizoli-Kempinska, ao estudar o conceito de Estranhamento elaborado pelo russo Viktor Chklovisk que “... construiu um conceito aberto e frutífero, o estranhamento remete à solicitação da arte enquanto invenção de uma forma radicalmente nova de percepção...” Assim sendo, quando ficamos no Centro Cultural a tarde toda esperando os participantes, que não vieram, por causa da chuva e a possibilidade de migrarmos para o Instituto de Linguagens, encontramos uma solução para realizarmos nossa proposta de vida para aquele dia especial.


Guloseimas no Espaço Antônio Sodré, Acervo: Tardes Lúdicas

Ao constatar que ali, também não seria possível consumir toda as guloseimas preparadas, ao encontrar a solução imediata, de corrermos para o ponto de ônibus, sem saber se ali, encontraríamos um outro problema: a recusa. Porém, qual foi nossa surpresa, ao constatarmos que a solução havia dado certo, os passageiros nos atenderam prontamente, estabelecendo uma comunicação afetiva, mesmo em poucos instantes, além de instigar no Serafim, o sentimento da possibilidade de permanecer ali, entregando as guloseimas, mediante a satisfação das pessoas, que se propuseram à experiência do novo, do estranho.
Ao rever o conceito de Estranhamento estudado por Guerizoli-Kempinska, ao analisar os estudos do grupo russo OPOIAZ (Sociedade de Estudo da [Teoria] da Linguagem Poética), como um procedimento realizado por escritores e artistas para criar uma barreira psicológica através do procedimento da “ilusão cintilante”, mediante nossa situação vivida na ação Cheiro de Infância, encontramos artifícios para romper as dificuldades vividas naquela tarde, quando propomos uma atividade para o coletivo, que na falta de participantes, a possibilidade de irmos para o Instituto de Linguagens e depois para o ponto de ônibus, nós quebramos todos os parâmetros que compunham nosso plano de trabalho, que era oferecermos pipoca e suco de caju no Centro Cultural da UFMT.
           Outra experiência que vivemos na ação Cheiro de Infância, foi proposta por mim, de uma certa forma, a flashmob. Enquanto estávamos distribuindo a pipoca e o suco para os participantes da ação Tardes Lúdicas, constatei que havia muita pipoca, para poucos participantes. Ao olhar para o ponto de ônibus, vi nele o lugar de concentração de muitos transeuntes, que poderiam consumir as guloseimas em pouco tempo. Mesmo considerando o modus operandi das flashmobs que são ações, manifestações lúdicas, instantâneas, efêmeras, convocando a população para reflexões políticas ou apolíticas, geralmente, convocadas, via mídia eletrônica, celulares, convoquei Serafim para uma intervenção instantânea no ponto de ônibus, para oferecer uma possibilidade inusitada, estabelecer vínculos afetivos com o coletivo, provocando um estranhamento e a perplexidade dos transeuntes, em poucos minutos.



Tardes Lúdicas, ao fundo Ponto de Ônibus, Av. Fernando C.da Costa

       Assim, naquele fim de tarde do domingo dia 03 de abril de 2016, no Ponto de Ônibus da UFMT, na Av. Fernando Correa da Costa, ao abordarmos diversas pessoas para comungar conosco o prazer da degustação, estabelecemos um contato efêmero com mulheres, crianças, homens, jovens e idosos, que naquele instante ficou registrado na memória de cada um a experiência extraordinária da degustação, criando laços afetivos com os movimentos de cidadania, que atuaram naquele dia, tirando os passageiros da sua rotina citadina, num final de domingo, enquanto uns iam ou voltavam do trabalho, outros transitavam das casas de familiares, enfim, aquela rotina de domingo foi alterada por uma experiência afetiva por pessoas que vivem na cidade, que saíram de uma organização e propuseram um imprevisto na rotina dos envolvidos numa ação do 100em1Dia, na cidade de Cuiabá.

Para LEFEBVRE (2008:105)

“... As necessidades sociais têm um fundamento antropológico; opostas e complementares, compreendem a necessidade de segurança e a de abertura, a necessidade de certeza e a necessidade de aventura, a da organização do trabalho e a do jogo, as necessidades de previsibilidade e do imprevisto, de unidade e de diferença, de isolamento e de encontro, de trocas e de investimentos, de independência (e mesmo de solidão) e de comunicação, de imediaticidade e de perspectiva a longo prazo. O ser humano tem também a necessidade de acumular energias e a necessidade de gastá-las, e mesmo de desperdiçá-las no jogo. Tem a necessidade de ver, de ouvir, de trocar, de degustar, e a necessidade de reunir essas percepções num “mundo...”

A cidade não contempla as ações que atuam na terceira via, os participantes, foram surpreendidos com uma proposta que os administradores públicos e urbanistas jamais pensaram para a cidade. Constroem-se aparelhos para recreação, para mobilidade, para as necessidades urbanas, mas as ações que transitam na terceira via, no afeto, no imaginário, não atingem o sentimento da população, uma vez que, ela vive automatizada no consumo, nas posses, nas relações do capital, no ir e vir para o trabalho, para a escola, numa rotina que não estabelece sentimentos.
            A ação Cheiro de Infância encontrou na trifurcação, a possibilidade do devir, do imaginário, das atividades lúdicas, do simbolismo, uma vez que, a pipoca seria o gatilho que despertaria, no participante, as lembranças da infância, das brincadeiras, trazendo para o mundo real as sensações do prazer, da alegria de ser criança, da ingenuidade, do mundo infantil, vivido na cidade, além de matar a fome, para quem estava numa longa jornada de viagens de ônibus
Nos espaços urbanos é possível romper o convencional e estabelecer vínculos afetivos, quebrando o isolamento proposto pelo cotidiano, no trabalho, na escola e tantos afazeres do mundo real, o homem precisa construir vínculos afetivos, sensações, estimular a criação para extravasar sua energia, construindo um mundo melhor para si e para os outros.
Para concluir, o evento 100em1diacuiabá estabeleceu um marco nas relações afetivas na sua gente, no sentimento da cidade, principalmente em nós que elaboramos a ação Cheiro de Infância, como também, uma gama de pessoas nos bairros, que desenvolveram diversas atividades, visando uma melhoria nas condições de vida para seus pares, para a cidade de Cuiabá. Este sentimento de pertencimento desencadeou uma série de atividades paralelas, que não foram inscritas, no projeto, em tempo hábil, constatando-se as contaminações. As pessoas fizeram mobilizações para resolverem os problemas vividos no seu cotidiano, cansadas de esperar pelos governantes. Essas conexões despertaram em todos nós atitudes questionadoras do poder público, que ignoram os princípios que norteiam a administração de uma cidade. A população está cansada desse modelo de político e de política, sem o menor compromisso com as instituições e com a sociedade. É preciso tomar decisões adversas na contramão do que está estabelecido, para se viver melhor, com dignidade e respeito ao próximo, à fauna e flora que nos rodeiam.

Referências:

ALZAMORA, Geane & ALENCAR, Renata. Flashmob: Reflexões Preliminares sobre uma Experiência de Rede, In: Anais V Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, Faculdade de Comunicação/UFBA, Salvador-Bahia, 27 a 29 de maio de 2009.
LEFEBRE. Henri. O Direito à Cidade, Trad. Rubens Eduardo Frias, são Paulo, Centauro, 2008.
GUERIZOLI-KEMPINSKA, Olga. O Estranhamento: Um Exílio Repentino da Percepção. In: Gragoatá Revista dos Programas de Pós-Graduação em Letras da UFF, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Nº 29, 2º Sem, p. 63-72, 2010.














[1] Aluna Especial do Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea/IL/UFMT, Mestre em Comunicação e Semiótica, PUC/SP; Servidora Técnica da UFMT.
[2] Doutor em Comunicação e Semiótica, PUC/SP, Docente e Orientador do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea/IL/UFMT; Docente da Universidade de Cuiabá.

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