Trabalho apresentado na
disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas
INTRODUÇÃO
Cuiabá, capital de Mato Grosso, já foi conhecida como cidade
verde, devido à abundância de vegetação e à riqueza dos seus córregos e
rios. No início dos anos 2000, ainda era
comum encontrar bacias com mangas nas portas da casas, uma cortesia para os
transeuntes e ainda uma prova de que os quintais cuiabanos permaneciam plenos e
produtivos.

Hoje, é cada vez mais raro encontrar as mangueiras até mesmo nas zonas menos urbanizadas e a tradição foi arrefecendo. Os cursos d´água cada vez mais contaminados pelo lixo e esgoto vão sendo cobertos por avenidas, agonizando longe dos olhos, como é o caso do Córrego da Prainha. Sua verdadeira marca registrada é o calor intenso. A média de temperatura nos meses de seca, entre maio e novembro, é de 37º (CLIMATOLOGIA, 2015).
Algumas manchas de vegetação ainda persistem, mas o título de
cidade verde é, cada vez mais, uma referência ao passado. A Copa do Mundo de
2014 deixou como legado o desmatamento e um projeto inacabado de reestruturação
urbana: viadutos e trincheiras foram entregues de forma semi-acabada enquanto o
VLT - Veículo Leve sobre Trilhos nunca saiu do papel. Por causa deste plano de
reurbanização, as avenidas Fernando Correa e do Historiador Rubens de Mendonça,
duas das principais vias arteriais do município, tiveram praticamente toda sua vegetação
derrubada.
Em Cuiabá, o verde não é só uma necessidade espiritual ou
contemplativa. Segundo Oliveira (2008, p. 27), o conforto micro climático é um
dos principais benefícios das áreas verdes urbanas em qualquer cidade. Em um
lugar tão quente, mesmo uma única árvore parece fazer falta.
Este é o cenário de uma cidade que parece exaurida por
problemas muito comuns à maioria dos aglomerados urbanos brasileiros:
transporte público precário, poucos espaços para convivência, falta de
estrutura de educação, saúde e lazer. A ausência do poder público encontrou um
contraponto na proposta do projeto 100 em 1 dia – Cuiabá, que reuniu 106 ações de mobilização social durante um dia
inteiro, 3 de abril, na capital de Mato Grosso. O evento faz parte do projeto Cidade Possível,
baseado no Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCO
da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT.
O 100em1 surgiu na Colômbia e já foi realizado em outros 28
países. Tem como proposta fomentar a transformação das cidades a partir de sua
célula fundamental: seus habitantes. Quando
se fala de habitantes costuma-se pensar apenas nos humanos. No entanto, há outras
centenas de formas de vida presentes no espaço urbano e que, geralmente,
costumam ser ignoradas.
Assim, a proposta deste trabalho é refletir sobre a presença dos
animais não-humanos na cidade a partir de uma das ações do projeto 100em1: o movimento ReviveCCZ, que buscou melhorar as
condições de salubridade no Centro de Controle de Zoonoses de Cuiabá, espaço
para onde são levados animais recolhidos nas ruas da capital. Este artigo caracteriza-se pela
abordagem interdisciplinar, utilizando como fundamentação teórica as áreas de
estudos animais, filosofia, direito, ecologia, comunicação e sociologia.
Invisibilidade e animalidade
As relações entre seres humanos e os outros animais sempre foi marcada pela desigualdade, a partir da premissa que o homem é detentor de características que o colocam numa posição de superioridade em relação às demais espécies (THOMAS, 2010). Derivado desse conceito, os animais não-humanos acabam sendo ignorados no contexto urbano, numa invisibilidade que parece tentar abafar as condições de vida massacrantes a que são submetidos no cotidiano das cidades. Em Cuiabá, é possível encontrar desde os bichos mais comuns, como pardais, até espécies mais conhecidas pela existência em áreas de mata, como tucanos, tuiuiús, jacarés do Pantanal, capivaras, teiús, entre outros (BAPTISTELLA, 2015). Esta distribuição revela as pressões causadas pelo desmatamento, especialmente aquele provocado pela abertura de novos bairros. É comum que as pessoas se encantem diante destas espécies exóticas sem levar em conta a precariedade de suas condições de sobrevivência ou se importarem com a maneira como subsistem (BAPTISTELLA, 2015).
Existe, entretanto, uma classe de animais que está mais
próxima da esfera de afeto e preocupações humanas: são os animais de estimação, bichos que
passaram a conviver de forma mais íntima conosco ao longo dos tempos. Conforme
Descola (1998), quanto mais próximo da espécie humana, maior a chance de
conquistar a consideração e a proteção advindas da empatia.

Pais (2006, p. 283) afirma que
estes dois espécimes tornaram-se tão íntimos do homem que estão passando por um
processo de antropomorfização. Tal proximidade
contribui para a ideia de que são incapazes de viver de forma independente e
sua existência fora da tutela humana é considerada problemática. Cães e gatos não precisam, obrigatoriamente,
viver num lar humano. Mas no
imaginário atual sua presença nas ruas é vista como errada, na medida em que
parece haver um consenso de que ambos devem ser cuidados por pessoas.
A partir desta perspectiva, os
vira-latas ou bichos de rua, surgem como uma categoria de animal duplamente
excluída: não são protegidos por humanos mas também não são reconhecidos em sua
autonomia, já que desenvolveram ao longo dos tempos uma relação de dependência
material e também afetiva com outra espécie, a humana.
O Centro de
Controle de Zoonoses
São estes animais, os cães e gatos de rua, o foco do movimento ReviveCCZ, formado por ONGS e protetores de animais independentes. Todos os integrantes do grupo, que reuniu cerca de 30 pessoas, tem o trabalho de defesa dos direitos dos animais como parte de sua biografia – notadamente, se não exclusivamente, a proteção de caninos e felinos.
O Centro de Controle de Zoonoses recebe animais que são
abandonados nas ruas e, por algum motivo, acabam sendo encaminhados para o
órgão, que é parte da estrutura da Secretaria de Saúde de Cuiabá. Conforme o próprio nome diz, o Centro é voltado
para controlar doenças. Até poucos tempo atrás, inclusive, os animais eram
eutanasiados depois de ficarem alguns dias a disposição para adoção – mas,
segundo os integrantes do ReviveCCZ, é muito raro aparecer um tutor para os animais do local. Uma ordem judicial de 2015 proibiu a matança
dos bichos recolhidos pelo poder público.
Mesmo assim, protetores relatam que são constantemente chamados para
pegar cães e gatos que estão no CCZ. Apesar do fim da eutanásia, os animais recebem apenas
água e comida no local. Não há nenhum outro tipo de cuidado e aqueles que são
saudáveis acabam doentes. Os que sofrem de alguma enfermidade, sem tratamento
adequado, acabam perecendo depois de muito sofrimento.
O prédio do CCZ de Cuiabá estava mal cuidado, com grama alta e grande ocorrência de carrapatos, que são transmissores da erliquiose, doença fatal para cães. Por dentro, as dependências também estavam sujas e mal cuidadas. Diante dessas questões, o grupo de protetores acreditou que uma ação de recuperação do CCZ promoveria não só o bem estar imediato para os animais abrigados no local como despertaria a responsabilidade do poder público e ainda a atenção da sociedade em geral para a questão dos animais abandonados da capital de Mato Grosso – um problema tão grave que a estimativa mais recente, apresentada pelo Ministério Público Estadual, é que haja 11 mil cães e gatos vivendo nas ruas do município.
Outra preocupação do grupo era que o movimento fosse o ponto
de partida para reivindicar a criação de uma Secretaria Municipal de Bem-estar
animal, de modo que cães e gatos fossem desvinculados de outros animais, menos
bem quistos pela sociedade e comumente apontados como vetores de zoonoses, tais
como pombos, ratos, morcegos e insetos em geral.
Entre os efeitos imediatos esteve a própria tomada de consciência do
poder público. Ao receber o pedido de
autorização para a ação, a prefeitura providenciou o corte da grama no
entorno do prédio. O grupo de cerca de
30 protetores que esteve no local durante o evento 100em1 fez a faxina dos
canis e gatis, instalou estruturas para que os animais pudessem brincar durante
o período de cativeiro e ainda cuidaram da higiene e da saúde dos bichos
abrigados no local, aplicando remédios para evitar o contágio por carrapatos e
pulgas.
Após a mobilização, o grupo mantém suas atividades e já
prepara outros eventos para conscientizar a população e cobrar do município a
criação de uma política de bem-estar animal, que inclua a construção de um
hospital veterinário público.
CONSIDERAÇÕES
Pensar os elos estabelecidos entre animais humanos e
não-humanos é analisar uma miríade de relações que vai da indiferença, no caso
daqueles que são transformados em produtos alimentícios, e chega até o amor
representado pela estimação. O projeto
ReviveCCZ evidenciou a posição frágil em que se encontram os cães e gatos que
não são tutelados por um humano. Apesar disso, mostrou que estes bichos estão
num patamar acima dos outros animais que resistem na cidade, pois existem
diversos grupos dispostos a agir para garantir sua proteção.
Num momento em que a posição dos animais na sociedade está em
franco questionamento, podemos constatar que a causa ganha contornos políticos,
uma vez que a sociedade encontra-se mais aberta a posições que coloquem o
especismo em cheque. Pinker (2011)
coloca a proteção animal entre as revoluções por direitos que ganharam corpo na
sociedade durante o século XX:
O reconhecimento dos interesses animais foi
impulsionado por defensores humanos de tal comportamento, movidos pela empatia,
pela razão e pela inspiração de outras Revoluções. O progresso foi desigual e
com certeza os próprios animais, caso pudessem ser consultados, ainda não nos
parabenizariam com tanto ardor. Porém, a tendência é real, e está mexendo com
todos os aspectos da nossa relação com nossos companheiros do reino animal.
(PINKER, 2011, p. 12150)
Na análise da
situação dos participantes do ReviveCCZ, o afeto e a empatia foram fatores
determinantes na adoção do papel social de protetor dos animais. Esta é uma identidade que pode ser incluída
no que Castells (2000) classificou como identidade de projeto.
Neste caso, a construção da identidade
consiste em um projeto de vida diferente, talvez com base em uma identidade
oprimida, porém expandindo-se no sentido da transformação da sociedade como
prolongamento desse projeto de identidade (...) (Castells, 2000, p.26).
Esta identidade é mobilizada pela relação com os bichos, mas envolve uma série de expectativas não cumpridas e metas não alcançadas. Os protetores não conseguem atender a todos os bichos, não conseguem satisfazer as cobranças humanas e principalmente não conseguem escapar da frustração por que a meta de acabar com os animais em situação de riscos nas ruas parece inatingível.
Assim, o 100em1 surge como uma possibilidade de ampliar o raio de ação dos protetores e, ao mesmo tempo, ferramenta de mobilização política, capaz de promover o bem estar animal e o envolvimento do poder público na causa.
REFERÊNCIAS
BAPTISTELLA, E.S.T. ANIMAIS E FRONTEIRAS: ENTRE ESPÉCIES,
CIÊNCIAS E COTIDIANO. 2015. 155 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Estudos em
Cultura Contemporânea, Instituto de Linguagens, Universidade Federal de Mato
Grosso, Cuiabá, 2015.
CASTELLS,
Manuel (2000). O poder da identidade.
São Paulo: Paz e Terra.
DESCOLA, Philippe. (1998) Estrutura ou sentimento: a
relação com o animal na Amazônia. Em: Mana 4 (1), 23-45.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-93131998000100002&script=sci_arttext. Acesso em 23 jun.
2015.
OLIVEIRA, Aguinaldo de. AVALIAÇÃO
DAS TEMPERATURAS SUPERFICIAIS DO SOLO EM RELAÇÃO À CONFORMAÇÃO URBANA EXISTENTE
NA PRAÇA DO AEROPORTO MARECHAL RONDON EM VÁRZEA GRANDE/MT. 2008. 81 f. Dissertação
(Mestrado) - Curso de Programa de Pós-graduação em Física e Meio Ambiente, Instituto
de Ciências Exatas e da Terra, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá,
2008.
PAIS,
José Machado. (2006) Nos rastos da
solidão: deambulações sociológicas. Lisboa: Ambar.
PINKER, Steven. (2011) Os anjos bons da nossa natureza – porque a violência diminuiu. São
Paulo: Companhia das Letras.
RITTO, C; ALVARENGA, B.
(2015) A casa agora é deles. Em: Veja,
n. 2429. São Paulo: Editora Abril, p. 71
- 77.
THOMAS, Keith. (2010) O homem e o mundo natural: mudanças de
atitude em relação às plantas e aos animais (1500 – 1800). São Paulo: Companhia
das Letras.
Esse texte faz a gente perceber quantas atitudes são necessárias para proteger esses animais frágeis e indefesos. É muito importante essas observações. Parabéns para a autora.
ResponderExcluirEsse texte faz a gente perceber quantas atitudes são necessárias para proteger esses animais frágeis e indefesos. É muito importante essas observações. Parabéns para a autora.
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