Heloisa Lima de
Carvalho[1]
RESUMO
O presente trabalho tem
por objetivo fazer a reflexão da intervenção urbana “Espaço para apedrejar”,
registrando o meu “olhar” sobre o evento, como também de que forma o público vê a
diversidade sexual e seus desdobramentos. A performance fez parte do Projeto
Cidade Possível e chama a atenção para as relações de gênero. Sabemos que a
sociedade é preconceituosa e simbolicamente apedrejam àqueles que fogem aos
padrões ditos “normais”. Os performers deixam dúvidas quanto a identidade de
gênero dos corpos que se travestem. A travestilidade circula pela via pública
ocupando as ruas, praças e esquinas da cidade.
Palavras-chave: identidade de gênero, performance, cidade, corpo, travestilidade.
O
projeto Cidade Possível intenciona compreender a cidade como “espaço de
construção da vida social”, lugar de acontecimentos, da mobilização de pessoas
e troca de experiências, construindo subjetividades para reinvenção da vida e exercício
da cidadania, também inscrever a cidade como um lugar de possibilidades por onde
transitam as diversidades. O objetivo desse ensaio é fazer a reflexão tomando
como foco a intervenção urbana “Espaço para apedrejar” e através da observação
perceber como os performers são vistos pelo público local, no que diz respeito
a identidade de gênero. Para isso farei a interface entre cidade, corpo, gênero
e sexualidade e as várias intercessões imbricadas nessa intervenção urbana,
dando foco a transvestilidade
Para
um melhor entendimento início a presente reflexão me reportando para a
importância da cidade enquanto espaço democrático, heterogêneo, plural aberto
as diferenças. Segundo Paula (2014) a cidade é o lugar do encontro,
constituindo-se como espaço de cultura, cultura essa que se desenvolve em seus
vários pontos de encontro:
Mercados, feiras,
bares e restaurantes, museus e escolas, teatros e cinemas, estádios e campos de
várzea, nas esquinas, nas exposições que aí acontecem e na sua própria
exposição, na efervescência de suas ruas, na sua arquitetura civil, religiosa e
política, popular e oficial, espontânea e planejada. (PAULA,2014, p.49).
Assim,
essa diversidade é que faz da cidade um lugar ímpar, segundo o autor, pensar na
homogeneidade da cidade, seria o mesmo que
promover a morte desta, uma vez que está sempre em constante mutação,
produzindo cultura e cidadania, refletindo a pluralidade humana. Dessa forma
“as intervenções urbanas, por meio da arte e de outras manifestações culturais,
se fazem necessárias e se tornam importantes para desenvolver na pessoa a
capacidade de pensar a cidade como espaço produtor de lutas” (PAULA,2014, p.50),
as intervenções urbanas tornam a cidade um laboratório aberto as investigações
sociais, política e artística.
Com esse intuito nasce o evento “Espaço
para apedrejar” que passo a descrever, consistiu de uma intervenção urbana
performática em que um grupo de amigos, aproximadamente vinte pessoas, se
encontraram e fizeram um churrasco de “maminha” e “linguiça” fazendo uso do
espaço público. Foi um encontro despojado, alegre, com música, araras com
várias roupas e os mais variados acessórios. As pessoas se travestiram atraindo
os olhares dos passantes que questionavam suas identidades de gênero. Ao redor
do evento estavam à disposição das pessoas, frutas, verduras e ovos para que
metaforicamente os performers fossem
“apedrejados”, caso houvesse motivação para isso. O objetivo do grupo foi
chamar atenção coletando as impressões do público sobre as relações de gênero,
colocando em xeque as identidades de gênero enquadradas nos padrões
homem/mulher dos participantes da ação. O local escolhido foi a Praça Popular, no
horário das 12:30 às 02:30 am do dia 03 de abril de 2016, madrugada de domingo.
Salientando que nesse dia aconteceu o 100em1dia, movimento global ocorrido na
cidade de Cuiabá como parte do projeto Cidade Possível, ou seja, aconteceram
100 intervenções em um dia em vários pontos da cidade.
A
Praça Popular fica localizada no bairro do mesmo nome, nasceu da simplicidade e
de acordo com o historiador Aníbal Alencastro (2015) o governo do Estado
construiu o primeiro Conjunto Habitacional Popular de Cuiabá por estar próximo ao 44º Batalhão do Exército e à
Escola Estadual Liceu Cuiabano. Hoje a Praça é um dos mais caros endereços da
cidade, um verdadeiro” point” com diversos bares, restaurantes,
entretenimentos, sendo um espaço elitizado, mas segundo o historiador desde
cedo com vocação natural a vida noturna.
Para
melhor entendimento da intervenção, procuro fazer a comparação entre o evento e
o teatro interativo. Segundo Borba (2012) a linguagem estética é teatral e
desenvolvida em função de problemas concretos, onde os artistas “ chegam
algumas horas antes do evento, ocupando um determinado lugar na praça para
elaborar a preparação para a festa teatral”(BORBA, 2012, p.18). Assim fizeram
os participantes do grupo “Espaço para apedrejar”, delimitaram um lugar na
praça marcando com fitas no chão, disponibilizando as frutas, legumes e ovos,
instalação da churrasqueira para a confecção do churrasco, caixas térmicas com
bebidas, roupas diversificadas e acessórios, uma bolsa e mala contendo
figurinos variados e fantasias (perucas, colares, pulseiras, bolsas, sapatos,
maquiagem), também tinha um colchão inflável, enfim os objetos de cena. Sem
contar o aparelho de som, pois a música é um elemento essencial, além das
vestes, para promoção das mais variadas performances, salientando que a praça é
arborizada, possui iluminação, porém o local escolhido tinha pouca luz, levando
em consideração que as travestis são pessoas de hábito noturno, gostam da penumbra,
a escolha do espaço, nesse aspecto, favoreceu o evento para a criação das
personagens.
De acordo com a definição do
Dicionário Caldas Aulete, performance significa “desempenho em uma exibição” ou
“evento geralmente improvisado em que o(s) artista(s) se apresenta(m) por conta
própria”, podendo ter o sentido de
execução de uma tarefa no aqui e no agora. A intervenção urbana “Espaço para
apedrejar” suscitou uma performance de gênero. Para Buttler (2000) gênero e
sexualidade se constituem materialmente através de atos performativos, essa
autora afirma que gênero é uma construção social. Segundo Butler aparentemente
se deduz uma identidade de gênero sexual ou étnica levando em conta as “marcas”
biológicas e que muitas vezes é equivocada uma vez que “os corpos são
significados pela cultura, e continuamente por ela alterados.
Bozon (1999) afirma que todas as
experiências sexuais são construídas como scripts,
ou seja, foram ao mesmo tempo aprendidos, codificados e inscritos na
consciência. Os scripts podem ser “intrapsíquicos”, interpessoais e “culturais”
que se manifestam no plano subjetivo da vida mental. Segundo esse autor “o pano
de fundo simbólico do sexual, os cenários culturais só funcionam como objeto de
interpretação (no sentido teatral) ”(BOZON,1999, p131). Assim as travestis
seguem toda uma programação, um rito, cuja intenção é transformar-se o máximo
possível, por isso se vestem de maneira exuberante, usam maquiagem, joias,
cabelos compridos. Assim fizeram os performers para chamar a atenção, trocando
de figurinos algumas vezes, retocando a maquiagem, se recriando. Tudo acontece
na cidade, que segundo Geometti e Braga (2004) a cidade, muito mais que simples
aglomerado de casas ou de indivíduos, é, por excelência, o lugar das trocas, do
comércio, das inter-relações das pessoas e de lugares. A travestilidade ocupa
esses espaços, são encontradas nas esquinas, avenidas e praças.
Dessa forma o corpo tem importância
fundamental, segundo Ponty (2006) “eu sou meu corpo”, o corpo é o que se mostra
no aqui e agora, assim o corpo das personagens do “Espaço para apedrejar” se
torna o palco dos sujeitos que se colocam como metáforas, abrindo alas para as
relações intersubjetivas dos que rodeiam a praça. Acontece uma encenação, uma
performance em plena praça pública, lembra o teatro mambembe, os participantes,
um grupo artístico, delimitam o espaço, começam a se transvestirem “vão
preparando cenografias, objetos de cena, pondo figurino, se maquiando e se
compondo para o espetáculo junto ao público” (BORBA, 2012, p.130, 131). Ainda
com Borba, “as pessoas chegam, saúdam e conversam com os integrantes do grupo
que estão em processo de preparação”. A música começa a tocar, são os mais
variados ritmos, o mais tocado é o Funk, o grupo dança, bebe, come, conversam
com as pessoas que vão chegando cumprimentando
o grupo, pelo que percebi eram pessoas conhecidas que foram apoiar os amigos,
apreciar a performance, tudo se dar como num espetáculo, algo interessante
também foi observado, de vez em quando, a música parava de tocar e entrava uma
mensagem denunciando os “crimes” praticados em Cuiabá contra as travestis,
chamando a atenção para a violência sofrida nas ruas, uma vez que esses
sujeitos são estigmatizados e marginalizados pela sociedade.
Butler
(2003) afirma que um corpo que performa constitui a plasticidade e
transitoriedade do sujeito, construindo sentido, expressa, atua e experimenta
identidade e diferenças, produzindo abjeção. Ainda com Butler (2003), no
processo de subjetivação, os termos que permitiriam às travestis serem
reconhecidas como pertencentes à categoria de seres humanos são limitados.
Apresentam-se, não como um sexo ou como um gênero, mas como apresentação a
própria ambiguidade; nem como “sexo mesclado”, mas sim como corporificação e
representação da contradição social. A travesti habita o limiar da distinção
entre categorias, desafiando “noções fáceis de binarismo e pondo em questão as
categorias de “fêmea” e “macho” tenta-se descobrir uma identidade desejada
real, seja, masculina ou feminina, por trás da máscara da travesti. Para essa
autora a travesti não é equivalente a um ou outro sexo, mas a figura que habita
as fronteiras nas quais as oposições são perpetuamente decompostas,
desorganizadas e subvertidas. A performance “Espaço para apedrejar” enquanto
acontecimento quer chamar a atenção para a diversidade, dando foco, a
travestilidade, dando visibilidade a esse público que está na cidade, ocupando
as ruas, as praças, marginalizadas, a maioria se prostituindo.
Para Lazarato (2006) o acontecimento ao
transfigurar as experimentações que havia preparado é que poderá fazer com que
essas experimentações surjam como uma nova aparência. Assim, o acontecimento pode promover mudanças
significativas na vida da comunidade, pode abrir novas possibilidades de
transformações possíveis. A cidade que acolhe é a mesma que apedreja. O
preconceito e discriminação pelos LGBTS (lésbicas, gays, bissexuais e
transgêneros), dentre eles destaco as travestis sofrem vários tipos de
violência, tanto física, quanto psíquica.
Não poderia fazer essa reflexão sem envolver a relação entre a cidade e o corpo. Adélia Prado no poema A terceira via diz que "sem o corpo a alma não goza", o corpo independente do sexo é o fenômeno mais imediato, atesta a existência. Para embasar a importância do corpo, tomo como aporte Maurice Merleau-Ponty na obra Fenomenologia da Percepção, onde o filósofo diz que o corpo não é coisa, nem um obstáculo, mas é parte integrante da totalidade do ser humano. É afirmação da existência do ser, afirma Merleau-Ponty (1999. p.207,208)
meu corpo não é
alguma coisa que eu tenho...eu não estou diante de meu corpo, estou em meu
corpo, ou antes sou meu corpo... Não contemplamos apenas as relações entre os
segmentos de nosso corpo e as correlações entre o corpo visual e o corpo tátil:
nós mesmos somos aquele que mantém em conjunto esses braços e essas pernas,
aquele que ao mesmo tempo os vê e os toca.
Dessa
maneira, sintetizando o encontro entre o sujeito e o corpo, o ser humano
define-se pelo corpo, significando que a subjetividade caminha paralelamente
com os processos corporais. O corpo travesti, não é uma coisa, é gesto,
linguagem, movimento, sensibilidade, desejo e dor. A relação entre o corpo do cidadão e “esse
outro corpo urbano” pode surgir uma outra forma de apreensão urbana e,
consequentemente, de reflexão e de intervenção na cidade contemporânea” (Jacques
e Brito, 2008). Para essas autoras, a cidade é lida pelo corpo, como conjunto
de condições interativas onde o corpo expressa a síntese dessa interação descrevendo
em sua corporeidade, o que passamos a chamar de corpografia urbana. Isso
significa que as experiências urbanas se inscrevem nos corpos daqueles que
experimentam, o que está vivendo a experiência e esse experimentar é correr
riscos, é se pôr a prova. Assim, os performers do “Espaço para apedrejar” estão
inseridos nesse projeto de movimentação corporal, metamorfoseando seus corpos,
se expondo, se pondo à prova. Conforme Jacques e Brito (2008) os corpos que se
travestem e dançam nos espaços urbanos realizam uma cartografia da coreografia,
e assim cada corpo pode acumular diferentes corpografias como resultado das diferentes
experiências. Ainda com essas autoras, os gestos e os movimentos do corpo que
fez a experiência urbana já revelam sua corpografia, a cidade é lida pelo
corpo, de forma interativa e se relacionam, involuntariamente, através das
experiências urbanas. Para Benedetti (2005), a rua pode ser o único
lugar onde a travesti se sinta bonita e desejada, além de ser um ambiente para
se encontrar homens que não se identificam com o universo gay, os chamados
"homens de verdade". É na esquina que as travestis têm pela primeira
vez a sensação de pertencer a algum lugar.
Dessa
forma o espetáculo da vida continua no “Espaço para apedrejar”, o público
transita pela praça na madrugada, os bares e restaurantes em pleno movimento,
música ao vivo, música eletrônica, jogos transmitidos pela TV a cabo, jogo de
futebol socyet na quadra, pessoas lancham na barraca de cachorro quente também
na praça. Percebi que algumas pessoas passavam se mostrando indiferentes” ao
acontecimento, em outras causava um certo “espanto” sem entender bem de que se
tratava, mas também despertou “interesse” quando se aproximavam sorrindo,
fotografando e até mesmo se misturando ao grupo, participando do evento.
Diante
do exposto faço alguns questionamentos: Será que as pessoas que se mostraram
indiferentes não queriam enxergar? Será que fingiram não ver? Ou a diversidade
sexual, naquele espaço da cidade, é vista com ”normalidade”? Por que não houve
o apedrejamento simbólico das performers. Essas indagações poderiam ter várias
hipóteses, talvez por ter sido realizada na Praça Popular, que de popular mesmo
só tem o nome (grifos meus), por ser um local frequentado pela classe média
alta, ou quem sabe também frequentado pelo público” travesti” como meio de
realização das trocas, trocas marcadas pelas desigualdades sociais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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RJ.
BOZON, Michel. Sociologia da
sexualidade. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004. (Cap. 2
BORBA, Juliano. Teatro
Comunitário e Dramaturgia do Espaço Público. N° 18 | março de 2012. 129. Urdimento. N° 18 | setembro de
2012
BUTLER,
Judith. “Corpos que pesam: sobre os
limites discursivos do sexo. ” In: LOURO, Guacira L. (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade.
Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
_________ Judith Butler. Problemas de gênero. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. (Cap. 1, pp. 17-6)
GIOMETTI,
Analúcia B. R e BRAGA, Roberto (orgs.). Pedagogia Cidadã: Cadernos de Formação:
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LAZZARATO,
Maurizio As revoluções do capitalismo
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Brasileira, 2006.
MERLEAU-PONTY,
Maurice. Fenomenologia da Percepção
(tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura). 2ª Ed.- São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Midia
News/Praça Popular disponível em
http://midianews.com.br/cotidiano/praca-popular-de-conjunto-habitacional-a-point-da-capital/236591
Acesso em 24/05/2016
PAULA,
Dalvit Greiner de. Intervenções Urbanas:
a arte aponta para o futuro. Revista Confluências Culturais.ISSN 2316
V.3,n.2 (2014) Joinville-SC.
PRADO,
Adélia. Poesia Reunida. 10ed. São
Paulo: Siciliano, 2001.p.349-50
[1]
Mestranda do Programa de Pós-Graduação dos Estudos de Cultura Contemporânea da
Universidade Federal de Mato grosso, Bacharel em Psicologia pelo Centro de
Ensino Superior de Maceió-CESMAC e Licenciada em Filosofia pela Universidade
Federal de Alagoas-UFAL.
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