domingo, 26 de junho de 2016

Manhã esportiva na Câmara Municipal de Cuiabá:refletindo sobre outros modos de estar na cidade.



Fabiana Cristina de Lima

Propositivo a pensar, experimentar e reencantar  a cidade, buscando outros modos de viver, de se relacionar e se organizar socialmente, o programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura ContemporâneaECCO da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT realizou, entre os dias 02 a 07 de abril de 2016, o evento Cidade Possível – 100 em 1 Cuiabá.
Em especial, no dia 03 de abril, aconteceu a programação pensada em “Uma cidade, um dia, cem ações. E, como parte da programação, o Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte, Cultura e Sociedade – GEPECS realizou, em frente a Câmara Municipal de Cuiabá, na praça Pascoal Moreira Cabral, região central da cidade, atividades de esporte com vistas ao lazer, provocativas a construção de representações da cidade, afinadas a convivência coletiva, a afetividade e ao bem comum.
As atividades de lazer empreendidas pelo GEPECS fizeram frente a uma perspectiva de cidade com uma visão funcionalista capitalista, em que ações, equipamentos, lugares devem servir aos interesses de produção de bens e serviços sempre afinados com as classes melhores posicionadas.
E, para tentar contribuir com um debate coletivo, integrando efetivamente o programa de atividades esportivas de lazer ao projeto Cidade Possível – 100 em 1 Cuiabá, o presente ensaio teve por objetivo evidenciar as possibilidades de pensar  outros modos de estar na cidade, para além do ponto de vista capitalista,  em que o esporte, enquanto atividade de lazer, pudesse incitar reflexões sobre outras organizações sociais que perspectivem  a recuperação /preservação da cidade em seus aspectos culturais, integrativos, comunitários, solidários e sócio afetivo.
A necessidade de se pensar sobre outros modos de estar na cidade, pela via do esporte enquanto meio de lazer, parte do mote de que a cidade, como a vemos hoje, reflete, em todos os seus aspectos, a intervenção do homem sobre ela. A sua urbanização, possibilidades de vivências sociais integrativas e afetivas, sua condição ambiental, seus traços culturais, seus espaços público de lazer foram ajustados de acordo com o estilo de vida atual dos que nela abitam. A cidade foi forjada de acordo com os interesses da sociedade atual.
Com isso, os espaços de convivência, de manifestações culturais, ficaram restritos a parcos espaços públicos e a determinados e pouco acessíveis espaços privados e a cidade transformou-se em um ambiente escasso de possibilidade de relações humanas.
E quando os espaços urbanos ficam escassos de oportunidades de vivências sociais, seja por conta da violência ou devido ao abandono por parte do poder público, determinados espaços fechados, como por exemplo, os shoppings, tornam-se uma alternativa de grande significância na cidade. E esses espaços

[...] surgem como um resgate de parte das funções paulatinamente perdidas pelos centros das cidades, apresentando-se como alternativa de lugar de encontro e permanência, assumindo um papel estruturante na cidade, na medida em que repõem algumas atividades básicas da vida urbana (LEMOS, 1992 apud FONSECA, 2005, p. 387.)

Em fragmentos das falas adquiridas por meio de entrevista[1] realizada com alguns dos participantes da programação esportiva de lazer – que serviu de intervenção deste ensaio, foi indicado como determinadas consequências desse estilo de vida atual, o aumento da violência, direta e indireta[2], a diminuição do tempo livre, visto que a necessidade de uma longa jornada laboral tem ocupado uma grande parte do tempo cronológico diário de todos e a diminuição do número de espaços para a convivência em grupo, em que os terrenos baldios, que possibilitava o futebol de várzea, foram ocupados, dando lugar a construções de residências ou empresas.

Agente trabalha de segunda a sexta, estuda, então agente as vezes não tem tempo de fazer nada, de jogar uma bola, fazer alguma atividade [... ](NA 27anos)
Com essa onda de violência, o pessoal está mais retraído, o estilo de vida mudou muito, todo mundo da cidade sofre muito. (JOS, 43 anos )

Alguém ainda tem visto algum campinho? Não tem, tudo virou prédio. Não tem como reunir a gurizada [...] no meu tempo não, tinha mais. (MA, 32)

Esses fatores, principalmente a questão violência, podem contribuir para um esvaziamento da cidade quando se pensa nela como cenário para se viver o tempo destinado ao lazer da população. Visto que, a cidade, “[...] comumente abandonadas pelo poder público e onde imperam a falta de segurança do pedestre, os problemas de tráfico e a falta de qualidade do espaço público contribuem para reforçar a opção do consumidor pelos espaços públicos fechados”. (FONSECA, 2005, p.387)
Dado o seguinte fato, este ensaio apresenta algumas reflexões a partir da elocução de alguns participantes das atividades esportivas de lazer, realizadas no dia 3 de abril de 2016, na praça Pascoal Moreira Cabral, em frente a Câmara Municipal de Cuiabá, integrante do projeto Cidade Possível – 100 em 1 Cuiabá.  
O local escolhido para a realização das atividades esportivas de lazer tem uma história que coaduna com outros modos de viver na cidade, pois antes de servir de sede ao Parlamento Cuiabano, em seus primeiros registros históricos, o local era destinado a castigar escravos e enforcar os condenados pela justiça, sendo conhecido como Campo D’Ourique ou popularmente como Largo da Forca. Para mudar a proposição de local de tortura e mortes em consequência de punições, em seguida o local passou a acolher as “Cavalhadas e Touradas Cuiabanas” como, também, abrigou em seu gramado o “futebol da gurizada”.[3]
No ano de 1909, foi construído naquela localidade um marco que indicava aquele como ponto central da América. Quando o local ganhou o reconhecimento de Centro Geodésico da América do Sul, começou-se a vislumbrar a construção da Assembleia Legislativa do Estado de Mato Grosso, no ano de 1972. Com a mudança do poder legislativo para o Centro Político Administrativo, em 2005, o local passa a sediar a Câmara Municipal de Cuiabá, até os dias atuais, sendo este o parlamento que reúne os representantes eleitos pelos cidadãos cuiabanos, responsável por estabelecer as leis que determinam a administração do município.
            E foi nesse ambiente, que entrelaça em todo o seu contexto histórico momentos de hostilidades, de lutas, de lúdico e de leis que situou-se uma programação esportiva de lazer em que 115 pessoas, entre homens e mulheres, de diferentes idades da fase adulta da vida[4]  puderam participar de atividades esportivas adaptadas, sendo elas: voleibol, basquetebol, futebol e lutas.  As adaptações feitas possibilitaram transformar essas modalidades esportivas em mines modalidade, essas atividades sofreram adaptações no tamanho do espaço de jogo, readequação dos seus aparatos como: diminuição da altura da rede de voleibol, da cesta/tabela de basquetebol, as traves do futebol foram constituídas por objetos que serviram de marcação como garrafas pets e o tatame – área para a prática da modalidade lutas, foi diminuído e organizado com placas de EVA.


Adaptação do jogo de voleibol


                     Adaptação da tabela de basquetebol

Adaptação do jogo de futebol feita através de sugestões dos próprios participantes



Adaptação do tatame para a modalidade de lutas


     A escolha por atividades esportivas de lazer se deu por compreender nesta característica de atividade a possibilidade de “vivência de inúmeras manifestações da cultura” e perceber no lazer um espaço de vivências em grupo que possibilita, também, a “recriação da práxis urbana, pela revisão da hegemonia da lógica do privado que destrói o bem coletivo para que uma cidade possa ser, de fato e para todos, o espaço da liberdade, da política, da cidadania e da justiça [...]”  (GOMES, 2008, p. 5, 15-16).
Como forma de capturar as informações provocativas a reflexões necessárias para a efetivação deste estudo, inicialmente foi elaborado um roteiro de perguntas para incitar as falas dos entrevistados de maneira que o conteúdo de suas elocuções estivesse diretamente relacionado com o interesse da investigação.
Foram escolhidos 15 dos participantes, a partir da observação da maneira motivada que os mesmos se envolviam nas atividades, para comunicar verbalmente, através de entrevista, o sentido que eles atribuíam às atividades tendo como referência uma nova maneira de se viver a/na cidade.
As entrevistas foram registradas por uma câmera que captura imagens e som – que registra fotos e vídeos e depois transcritas para que melhor fosse possível visualizar as informações prestadas.
E foi através da análise das falas dos participantes que chegamos a verificação de que é a partir da vivência interna que se torna possível, sensivelmente, resignificar outros modos de se viver na cidade.
As informações apontaram, em sua maioria, que desenvolvendo atividades que promovem situações de prazer, que não tem outro propósito a não ser o divertimento, é possível melhor sentir-se, sentir o outro e o que está ao seu redor.

Ah, enquanto eu jogo eu presto mais atenção em mim mesma, eu não tenho que me preocupar com os problemas [...] eu consigo até ouvir melhor o meu colega e até entender melhor ele.[...] Isso pode me ajudar a prestar mais atenção na cidade. (GI, 28 anos)

Então, nessas brincadeiras agente se diverte, brinca. Pode ficar mais tranquilo, olhar com mais calma para o dia, pensar melhor na gente, na vida. (CLA, 24anos)

Aqui a gente só pensa em se divertir, não tem que vencer ou ganhar dinheiro. Então eu pude me concentrar, acho um melhor estilo de vida. (RO, 27 anos)

[...] eu estudo já tem quase dois meses com aquele cara ali e nem tinha conversado direito com ele. [...] durante o jogo, ele estava no meu time, eu até achei ele divertido. Eu acertei uma bola nele e ele nem me xingou e olha que deve ter doido (MAR, 23 anos)

[... ] É uma atividade muito importante pois as pessoas podem interagir [...] pode até pensar em uma cidade onde o próximo pensa no próximo, do jeito que está, está difícil, mas o esporte aproxima as pessoas. (JOS,  43 anos)

Através dessas falas, podemos observar, também, a oportunidade de interações sociais, de vivências afetivas. E sendo o lazer “um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda, para desenvolver [...] sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora [...]” (DUMAZEDIER, 1976, p.34), essas reações/interações podem ser esperadas nos sujeitos participantes de atividades de lazer.
A participação nas atividades também trouxe a oportunidade de ocupação de um local público, em um sentido diferente daquele esperado e previamente determinado para aquele ponto. Visto que ali situa-se a “casa” que representa o poder legislativo do município, responsável por elaborar leis e fiscalizar o trabalho do poder executivo da cidade.

Agente pode ocupar esse espaço aqui né, que é público [...] eu nem imaginava que dava para fazer essas atividades aqui. Mas foi bom, né. Dá pra pensar diferente sobre esse lugar (MAR, 23 anos)

[...] que eu nunca tinha participado disso, sabe, e assim, [...] eu nunca tinha imaginado também que poderia, assim,  no meio da cidade, agente podia fechar um espacinho para gente poder tá participando né, de atividade [...] então assim é uma oportunidade muito boa que a agente tem e teve e eu acho bem legal. (MA, 25 anos)

Essa ocupação tornou-se significativa a partir do desafio de revisitar a cidade, conferindo a outros pontos a possibilidade de realização de atividades de lazer, artísticas, recreativas. E que, assim, seja possível a revitalização de praças e demais locais urbanos a fim de se redefinir outro modo de estar na cidade, em uma reapropriação de determinados espaços urbanos pelos cidadãos, tendo em vista a retomada da utilização dos espaços públicos como forma de melhores condições de vida da população cuiabana, em que, a partir da ocupação popular desses espaços, surja o sentimento de necessidade de melhor atenção, cuidado do bem comum, que é a cidade, partindo, daí, para efetivas representações em ações sociais e políticas, aumentando a representação popular sobre o espaço urbano.
Acreditamos, com isso, poder, também, contribuir com a apropriação, com a “experiência efetiva ou prática dos espaços urbanos, pela própria experiência corporal, sensorial, da cidade”. Visto que “A redução da ação urbana, [...], leva uma restrição das possibilidades perceptivas do corpo que, então, se configura sob um padrão de corporeidade mais restrito, e os espaços urbanos se tornam simples cenários, espaços desencarnados.” Assim como, tão bem, indicou Britto e Jacques (2008, p.80).

Referências

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 11ª ed., 1998. Vol. 1: 674 p. (total: 1.330 p.)

                                                                                   
BRITTO, Fabiana Dultra; JACQUES, Paola Berenstein. Cenografias e corpografias urbanas: um diálogo sobre as relações entre corpo e cidade. Cadernos PPG-AU/FAUFBA, v. esp, p. 79-86, 2008.


DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e cultura popular. São Paulo: Perspectiva, 1976.


FONSECA, Maria de Lourdes Pereira. Padrões sociais e uso do espaço público Caderno CRH, Salvador, v. 18, n. 45, p. 377-394, Set./Dez. 2005.


GOMES, Christianne Luce. lazer urbano, contemporaneidade e educação das sensibilidades. Revista Itinerarium v.1 2008. Departamento de Turismo e Patrimônio – Escola de Museologia – Centro de Ciências Humanas e Sociais Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).




[1] Para a apreensão de informações que contribuíssem para reflexões acerca de outros modos de se viver na cidade, provocadas pela vivência em atividades esportivas de lazer, alguns participantes da intervenção deste estudo foram convidados a participar de uma entrevista cujas questões norteadoras abarcavam a forma como percebiam a sua cidade e como atividades esportivas de lazer poderiam contribuir para outros modos de viver nela.
[2] O sentido de violência tratado aqui refere-se a definição proposta por  Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p. 1291) que a define como “a intervenção física de um indivíduo ou grupo contra outro indivíduo ou grupo (ou também contra si mesmo).”  E, também, segundo os mesmos autores “A Violência pode ser direta ou indireta. É direta quando atinge de maneira imediata o corpo de quem a sofre. É indireta quando opera através de uma alteração do ambiente físico no qual a vítima se encontra [...] ou através da destruição, da danificação ou da subtração dos recursos materiais. (Ibidem, p. 1291-1292)
[3] “Cronistas da época asseguram que em 15 de novembro de 1913 foi inaugurado a primeira praça esportiva como forma de incentivo ao crescimento do esporte na cidade. O gramado ficava no Campo D’Ourique, onde atualmente se encontra a Praça Pascoal Moreira Cabral que abriga o marco do Centro Geodésico da América do Sul e a Câmara Municipal. O futebol começava a desbancar o “esporte” favorito na época, as touradas cuyiabanas”. (fonte: <http://www.mtnacopa.mt.gov.br/cuiaba/futebol-em-mato-grosso/historia-do-futebol-em-mato-grosso/75717>. Acesso em: 12/05/2016).
[4] Citamos aqui fase adulta em referência a idade cronológica.

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