Fabiana
Cristina de Lima
Propositivo a pensar, experimentar e reencantar a cidade, buscando outros modos de viver, de
se relacionar e se organizar socialmente, o
programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCO da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT realizou, entre os dias 02 a 07 de abril de 2016, o
evento Cidade Possível – 100 em 1 Cuiabá.
Em especial, no dia 03 de abril, aconteceu a
programação pensada em “Uma cidade, um dia, cem
ações”. E, como parte da programação, o Grupo de Estudos e
Pesquisas em Esporte, Cultura e Sociedade – GEPECS realizou, em frente a Câmara
Municipal de Cuiabá, na praça Pascoal Moreira Cabral, região central da cidade,
atividades de esporte com vistas ao lazer, provocativas a construção
de representações da cidade,
afinadas a convivência coletiva, a
afetividade e ao bem comum.
As
atividades de lazer empreendidas pelo GEPECS fizeram frente a uma perspectiva de cidade
com uma visão funcionalista capitalista, em que ações, equipamentos, lugares
devem servir aos interesses de produção de bens e serviços sempre afinados com
as classes melhores posicionadas.
E, para tentar contribuir com um debate coletivo,
integrando efetivamente o programa de atividades esportivas de lazer ao projeto
Cidade Possível – 100 em 1 Cuiabá, o presente ensaio teve por
objetivo
evidenciar as
possibilidades de pensar outros modos de
estar na cidade,
para além do ponto de vista capitalista, em
que o esporte, enquanto atividade de lazer, pudesse incitar reflexões sobre
outras organizações sociais que perspectivem a recuperação /preservação da cidade em seus aspectos
culturais, integrativos, comunitários, solidários e sócio afetivo.
A necessidade de se pensar
sobre outros modos de estar na cidade, pela via do esporte enquanto meio de
lazer, parte do mote de que a cidade, como a vemos hoje, reflete, em todos os
seus aspectos, a intervenção do homem sobre ela. A sua urbanização,
possibilidades de vivências sociais integrativas e afetivas, sua condição
ambiental, seus traços culturais, seus espaços público de lazer foram ajustados
de acordo com o estilo de vida atual dos que nela abitam. A cidade foi forjada
de acordo com os interesses da sociedade atual.
Com isso, os espaços de
convivência, de manifestações culturais, ficaram restritos a parcos espaços
públicos e a determinados e pouco acessíveis espaços privados e a cidade
transformou-se em um ambiente escasso de possibilidade de relações humanas.
E
quando os espaços urbanos ficam escassos de oportunidades de vivências sociais,
seja por conta da violência ou devido ao abandono por parte do poder público,
determinados espaços fechados, como por exemplo, os shoppings, tornam-se uma
alternativa de grande significância na cidade. E esses espaços
[...] surgem como
um resgate de parte das funções paulatinamente perdidas pelos centros das
cidades, apresentando-se como alternativa de lugar de encontro e permanência,
assumindo um papel estruturante na cidade, na medida em que repõem algumas
atividades básicas da vida urbana (LEMOS, 1992 apud FONSECA, 2005, p. 387.)
Em fragmentos das falas
adquiridas por meio de entrevista[1]
realizada com alguns dos participantes da programação esportiva de lazer – que
serviu de intervenção deste ensaio, foi indicado como determinadas
consequências desse estilo de vida atual, o aumento da violência, direta e
indireta[2],
a diminuição do tempo livre, visto que a necessidade de uma longa jornada
laboral tem ocupado uma grande parte do tempo cronológico diário de todos e a
diminuição do número de espaços para a convivência em grupo, em que os terrenos
baldios, que possibilitava o futebol de várzea, foram ocupados, dando lugar a
construções de residências ou empresas.
Agente trabalha de
segunda a sexta, estuda, então agente as vezes não tem tempo de fazer nada, de
jogar uma bola, fazer alguma atividade [... ](NA 27anos)
Com
essa onda de violência, o pessoal está mais retraído, o estilo de vida mudou
muito, todo mundo da cidade sofre muito. (JOS, 43 anos )
Alguém
ainda tem visto algum campinho? Não tem, tudo virou prédio. Não tem como reunir
a gurizada [...] no meu tempo não, tinha mais. (MA, 32)
Esses fatores,
principalmente a questão violência, podem contribuir para um esvaziamento da
cidade quando se pensa nela como cenário para se viver o tempo destinado ao
lazer da população. Visto que, a cidade, “[...] comumente abandonadas pelo poder público e onde imperam a falta de
segurança do pedestre, os problemas de tráfico e a falta de qualidade do espaço
público contribuem para reforçar a opção do consumidor pelos espaços públicos
fechados”. (FONSECA, 2005,
p.387)
Dado
o seguinte fato, este ensaio apresenta algumas reflexões a partir da elocução de alguns participantes das atividades esportivas de
lazer, realizadas no dia 3 de abril de 2016, na praça Pascoal Moreira Cabral, em
frente a Câmara Municipal de Cuiabá, integrante do projeto Cidade Possível – 100 em 1 Cuiabá.
O local escolhido para a realização das atividades esportivas de lazer tem
uma história que coaduna com outros modos de viver na cidade, pois antes de servir
de sede ao Parlamento Cuiabano, em seus primeiros registros históricos, o local
era destinado a castigar escravos e enforcar os condenados pela justiça, sendo
conhecido como Campo D’Ourique ou popularmente como Largo da Forca. Para mudar
a proposição de local de tortura e mortes em consequência de punições, em
seguida o local passou a acolher as “Cavalhadas e Touradas Cuiabanas” como,
também, abrigou em seu gramado o “futebol da gurizada”.[3]
No ano de 1909, foi
construído naquela localidade um marco que indicava aquele como ponto central
da América. Quando o local ganhou o reconhecimento de Centro Geodésico da
América do Sul, começou-se a vislumbrar a construção da Assembleia Legislativa
do Estado de Mato Grosso, no ano de 1972. Com a mudança do poder legislativo
para o Centro Político Administrativo, em 2005, o local passa a sediar a Câmara
Municipal de Cuiabá, até os dias atuais, sendo este o parlamento que reúne os
representantes eleitos pelos cidadãos cuiabanos, responsável por estabelecer as
leis que determinam a administração do município.
E foi nesse ambiente, que entrelaça
em todo o seu contexto histórico momentos de hostilidades, de lutas, de lúdico
e de leis que situou-se uma programação esportiva de lazer em que 115 pessoas,
entre homens e mulheres, de diferentes idades da fase adulta da vida[4] puderam participar de atividades esportivas
adaptadas, sendo elas: voleibol, basquetebol, futebol e lutas. As adaptações feitas possibilitaram
transformar essas modalidades esportivas em mines modalidade, essas atividades
sofreram adaptações no tamanho do espaço de jogo, readequação dos seus aparatos
como: diminuição da altura da rede de voleibol, da cesta/tabela de basquetebol,
as traves do futebol foram constituídas por objetos que serviram de marcação
como garrafas pets e o tatame – área para a prática da modalidade lutas, foi
diminuído e organizado com placas de EVA.
![]() |
Adaptação do jogo de
voleibol
|
![]() |
Adaptação da tabela
de basquetebol
|
![]() |
Adaptação do jogo de futebol feita através de sugestões
dos próprios participantes
|
![]() |
Adaptação do tatame para a modalidade de lutas
|
A
escolha por atividades esportivas de lazer se deu por compreender nesta
característica de atividade a possibilidade de “vivência de inúmeras
manifestações da cultura” e perceber no lazer um espaço de vivências em grupo
que possibilita, também, a “recriação da práxis urbana, pela revisão da
hegemonia da lógica do privado que destrói o bem coletivo para que uma cidade
possa ser, de fato e para todos, o espaço da liberdade, da política, da
cidadania e da justiça [...]” (GOMES, 2008, p. 5, 15-16).
Como forma de capturar as
informações provocativas a reflexões necessárias para a efetivação deste
estudo, inicialmente foi elaborado um roteiro de perguntas para incitar as
falas dos entrevistados de maneira que o conteúdo de suas elocuções estivesse
diretamente relacionado com o interesse da investigação.
Foram escolhidos 15 dos
participantes, a partir da observação da maneira motivada que os mesmos se
envolviam nas atividades, para comunicar verbalmente, através de entrevista, o
sentido que eles atribuíam às atividades tendo como referência uma nova maneira
de se viver a/na cidade.
As entrevistas foram
registradas por uma câmera que captura imagens e som – que registra fotos e vídeos
e depois transcritas para que melhor fosse possível visualizar as informações
prestadas.
E foi através da análise das
falas dos participantes que chegamos a verificação de que é a partir da
vivência interna que se torna possível, sensivelmente, resignificar outros
modos de se viver na cidade.
As informações apontaram, em
sua maioria, que desenvolvendo atividades que promovem situações de prazer, que
não tem outro propósito a não ser o divertimento, é possível melhor sentir-se,
sentir o outro e o que está ao seu redor.
Ah, enquanto eu jogo
eu presto mais atenção em mim mesma, eu não tenho que me preocupar com os
problemas [...] eu consigo até ouvir melhor o meu colega e até entender melhor
ele.[...] Isso pode me ajudar a prestar mais atenção na cidade. (GI, 28 anos)
Então, nessas
brincadeiras agente se diverte, brinca. Pode ficar mais tranquilo, olhar com
mais calma para o dia, pensar melhor na gente, na vida. (CLA, 24anos)
Aqui a gente só pensa
em se divertir, não tem que vencer ou ganhar dinheiro. Então eu pude me
concentrar, acho um melhor estilo de vida. (RO, 27 anos)
[...] eu estudo já
tem quase dois meses com aquele cara ali e nem tinha conversado direito com
ele. [...] durante o jogo, ele estava no meu time, eu até achei ele divertido.
Eu acertei uma bola nele e ele nem me xingou e olha que deve ter doido (MAR, 23
anos)
[... ] É uma atividade muito
importante pois as pessoas podem interagir [...] pode até pensar em uma cidade
onde o próximo pensa no próximo, do jeito que está, está difícil, mas o esporte
aproxima as pessoas. (JOS, 43 anos)
Através dessas falas,
podemos observar, também, a oportunidade de interações sociais, de vivências
afetivas. E sendo o lazer “um conjunto de
ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para
repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda, para
desenvolver [...] sua participação social voluntária ou sua livre capacidade
criadora [...]” (DUMAZEDIER, 1976, p.34), essas reações/interações podem ser
esperadas nos sujeitos participantes de atividades de lazer.
A participação nas
atividades também trouxe a oportunidade de ocupação de um local público, em um
sentido diferente daquele esperado e previamente determinado para aquele ponto.
Visto que ali situa-se a “casa” que representa o poder legislativo do município,
responsável por elaborar leis e fiscalizar o trabalho do poder executivo da
cidade.
Agente pode ocupar
esse espaço aqui né, que é público [...] eu nem imaginava que dava para fazer
essas atividades aqui. Mas foi bom, né. Dá pra pensar diferente sobre esse
lugar (MAR, 23 anos)
[...]
que eu nunca tinha participado disso, sabe, e assim, [...] eu nunca tinha
imaginado também que poderia, assim, no
meio da cidade, agente podia fechar um espacinho para gente poder tá
participando né, de atividade [...] então assim é uma oportunidade muito boa
que a agente tem e teve e eu acho bem legal. (MA, 25 anos)
Essa ocupação tornou-se significativa a partir do
desafio de revisitar a cidade, conferindo a outros pontos a possibilidade de
realização de atividades de lazer, artísticas, recreativas. E que, assim, seja
possível a revitalização de praças e demais locais urbanos a fim de se
redefinir outro modo de estar na cidade, em uma reapropriação de determinados
espaços urbanos pelos cidadãos, tendo em vista a retomada da utilização dos espaços públicos como forma de melhores condições de vida da
população cuiabana, em que, a partir da ocupação popular desses espaços, surja
o sentimento de necessidade de melhor atenção, cuidado do bem comum, que é a
cidade, partindo, daí, para efetivas representações em ações sociais e
políticas, aumentando a representação popular sobre o espaço urbano.
Acreditamos,
com isso, poder, também, contribuir com a apropriação, com a “experiência
efetiva ou prática dos espaços urbanos, pela própria experiência corporal,
sensorial, da cidade”. Visto que “A redução da ação urbana, [...], leva uma
restrição das possibilidades perceptivas do corpo que, então, se configura sob
um padrão de corporeidade mais restrito, e os espaços urbanos se tornam simples
cenários, espaços desencarnados.” Assim como, tão bem, indicou Britto e Jacques
(2008, p.80).
Referências
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola;
PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de
política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 11ª ed., 1998. Vol.
1: 674 p. (total: 1.330 p.)
BRITTO, Fabiana Dultra; JACQUES, Paola Berenstein.
Cenografias e corpografias urbanas: um diálogo sobre as relações entre corpo e
cidade. Cadernos PPG-AU/FAUFBA, v.
esp, p. 79-86, 2008.
DUMAZEDIER,
Joffre. Lazer e cultura popular. São Paulo: Perspectiva, 1976.
FONSECA, Maria de Lourdes Pereira. Padrões sociais e uso do espaço público Caderno CRH, Salvador, v. 18, n. 45, p. 377-394, Set./Dez.
2005.
GOMES, Christianne Luce. lazer
urbano, contemporaneidade e educação das sensibilidades. Revista
Itinerarium v.1 2008. Departamento de Turismo e Patrimônio – Escola de
Museologia – Centro de Ciências Humanas e Sociais Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
http://www.seer.unirio.br/index.php/itinerarium
(acesso em: 16/05/2016)
[1] Para a apreensão de informações que
contribuíssem para reflexões acerca de outros modos de se viver na cidade,
provocadas pela vivência em atividades esportivas de lazer, alguns
participantes da intervenção deste estudo foram convidados a participar de uma
entrevista cujas questões norteadoras abarcavam a forma como percebiam a sua
cidade e como atividades esportivas de lazer poderiam contribuir para outros
modos de viver nela.
[2] O sentido de violência tratado aqui
refere-se a definição proposta por Bobbio,
Matteucci e Pasquino (1998, p. 1291) que a define como “a intervenção física de
um indivíduo ou grupo contra outro indivíduo ou grupo (ou também contra si
mesmo).” E, também, segundo os mesmos
autores “A Violência pode ser direta ou indireta. É direta quando atinge de
maneira imediata o corpo de quem a sofre. É indireta quando opera através de
uma alteração do ambiente físico no qual a vítima se encontra [...] ou através
da destruição, da danificação ou da subtração dos recursos materiais. (Ibidem, p.
1291-1292)
[3] “Cronistas da época asseguram que em 15 de novembro de
1913 foi inaugurado a primeira praça esportiva como forma de incentivo ao
crescimento do esporte na cidade. O gramado ficava no Campo D’Ourique, onde
atualmente se encontra a Praça Pascoal Moreira Cabral que abriga o marco do
Centro Geodésico da América do Sul e a Câmara Municipal. O futebol começava a
desbancar o “esporte” favorito na época, as touradas cuyiabanas”. (fonte: <http://www.mtnacopa.mt.gov.br/cuiaba/futebol-em-mato-grosso/historia-do-futebol-em-mato-grosso/75717>.
Acesso em: 12/05/2016).
[4] Citamos aqui fase adulta em
referência a idade cronológica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário