O que me surpreende, em nossa sociedade, é que a arte
se relacione apenas com objetos e não com indivíduos ou a vida; e que também
seja um domínio especializado, um domínio de peritos, que são os artistas. Mas
a vida de todo indivíduo não poderia ser uma obra de arte? Por que uma mesa ou
uma casa são objetos de arte, mas nossas vidas não? (Foucault, 1994, p. 617).
Esse ensaio pretende levantar considerações sobre
o sujeito contemporâneo no mundo capitalista, suas subjetividades afetadas pelo
modo de vida atual nas grandes cidades e as intervenções urbanas estéticas como
micro revoluções capitalísticas, que se
reverberam contaminado seus habitantes e trazendo reflexões críticas que
busquem contrapor formas de dominação e controle ao exercício criativo da
invenção de si mesmo num mundo possível.
O cotidiano dos que habitam as grandes cidades nas sociedades
capitalistas, impulsionou diversos pensadores: Guattari e Rolnik (1996);
Lazzarato ( 2006); Foucault (1994) a observarem o modo de vida nas metrópoles mundiais, entre seus
pensamentos chegou-se a um consenso, que
o modo de vida de seus habitantes não poderia ser viável, e talvez, nem um
pouco satisfatório uma existência sem criatividade, autonomia e felicidade.
A cidade tem se tornado o reflexo frio de nosso sistema
capitalista de consumo: trânsitos insuportáveis, lugares sujos, perigosos e impossíveis de serem habitáveis
com satisfação. Hoje o morador da cidade grande prefere ficar em casa e/ou
ambientes fechados, jogando, vendo televisão, no computador, comendo, protegido
dessa loucura que tem se tornado as grandes cidades, e do que é estar nesse
ambiente.
As praças, cadeiras nas calçadas, caminhadas pelas ruas tem
sido substituídos por lugares fechados e
passeios de automóveis. Tudo é feito com muita rapidez, o tempo parece correr
depressa demais e ninguém pode perder um minuto sequer para contemplar, olhar
ou mesmo observar o que temos nas ruas e no nosso dia a dia.
Sobre esse comportamento repetitivo, no qual, todos seguem
sem questionar sob esse comportamento alienante social nas cidades, Guattari e
Rolnik (1996) nos alertam para uma “subjetividade capitalística”, que nos tem
tornados robôs nesse sistema, no qual apenas o que importa é o lucro das
grandes corporações, portanto o indivíduo e seu viver e ser, não estão em
pauta.
O indivíduo, a meu ver, esta na encruzilhada de
múltiplos componentes de subjetividade. Entre esses componentes alguns são
inconscientes. Outros são mais do domínio do corpo, território no qual nos
sentimos bem. Outros são mais no domínio daquilo que os sociólogos americanos
chamam de "grupos primários" (o clã, o bando, a turma, etc.). Outros,
ainda, são do domínio da produção de poder; situam-se em relação a lei, a
policia, etc. Minha hipótese é que existe também uma subjetividade ainda mais
ampla: é o que chamo de subjetividade capitalística. (GUATTARI; ROLNIK, 1996.
p. 34).
Para os autores, a cultura de massa é vista como elemento
fundamental da "produção de uma subjetividade capitalística”, já que é
essa cultura que produz indivíduos normalizados, “articulados uns aos outros
segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão.”
(IBIDEM, 1996, p. 16). Mesmo que inconscientes esse modo de vida que
acreditamos ser legitimo é uma influência voraz do sistema capitalista, que
pretende garantir uma função hegemônica em nossos pensamentos, modos de agir,
comportar, andar, falar, ver e saber.
Contudo, e na contramão dessa “subjetividade capitalística”
que nos encontramos mergulhados, já
quase nos afogando, os mesmos autores que cito acima, propõem uma saída a
partir da arte, da estética, dos atos de criação, do ocupar esses espaços
abandonados, para propor a reflexão de outra maneira de estar no mundo.
No Brasil, apesar de o país estar comprometido com um processo
capitalístico e estar em vias de tornar-se uma grande potencia, há imensas
zonas da população “não garantida” que escapam a esse tipo de esquadrinhamento,
a esse tipo de produção de subjetividade, e isso é muito importante. (GUATTARI;
ROLNIK, 1996, p. 58).
Apesar de estarmos mergulhados nesse sistema de alienação e
robotização, no fundo, os sujeitos, ou quase as maiorias deles, não estão
satisfeitos com esse modo de viver e estar na vida, é frustrante e causa
insatisfação. Mesmo que o indivíduo não saiba o que o deixa assim, existe a
sensação de incomodo e infelicidade nos convívios sociais nas grandes cidades.
Visto nos noticiários diários, os exorbitantes números de pessoas que procuram ajuda
médica, por depressão em suas vidas cotidianas.
Esses mesmos meios de comunicação que anunciam essa epidemia
de tristeza na sociedade contemporânea, também participam na produção da
“subjetividade capitalística”, já que tem grande influência e está relacionado
a normalização dos corpos, da obediência, da hegemonização no pensar e agir.
Para Guattari e Rolnik,
O que vai permitir o desmantelamento da produção de
subjetividade capitalística e que a reapropriação dos meios de comunicação de
massa se integre em agenciamentos de enunciação que tenham toda uma micropolítica
e uma política no campo social. Uma rádio livre só tem interesse se ela é vinculada
a um grupo de pessoas que querem mudar sua relação com a vida cotidiana, que
querem mudar o tipo de relação que tem entre si no seio da própria equipe que
fabrica a radio livre, que desenvolvem uma sensibilidade; pessoas que tem uma
perspectiva ativa a nível desses agenciamentos e, ao mesmo tempo, não se fecham
em guetos a esse nível. (IBIDEM, 1996, p.47).
Acredito, portanto, que as intervenções estéticas urbanas
que acontecem cada vez mais nas grandes cidades do Brasil e do mundo, propõem a
seus habitantes modificarem seus fluxos diários, podendo inclusive provocar nos
indivíduos reflexões sobre si mesmos e o
processo de criatividade experimentado, faça surgir um sentimento “prazeroso”,
diferenciado, que deva ser compartilhado.
Em muitos casos, esse mesmo sentimento de prazer, possa provocar o “estar e pertencer” na
cidade, inclusive, seja desejado outras
vezes e que através da contemplação e/ou participação das intervenções
estéticas, possam se recriar revoluções, já que fazem com que os sujeitos
pensem e reflitam nessa pré-condição capitalística de existir.
Guattari (1996, p. 46) menciona a revolução molecular
como produção “não só de uma vida
coletiva, mas também da encarnação da vida para si própria, tanto no campo
material, quanto no campo subjetivo.” Há, portanto uma resistência social
quando saímos desse domínio normatizado e partimos para outro lugar de criação
e reflexão do homem na cidade.
Acredito então, que intervenções estéticas urbanas mudem os
fluxos de seus habitantes na normatização de seus corpos e pensamentos
alienantes no sistema de vida atual, e que, portanto possa ser considerada uma
expressão de revolução capitalística, já que transfere o indivíduo para outra
lógica de estar e ser no mundo.
Eliminar o gênio é a preocupação manifesta. Poderíamos
nem levar em consideração, se fosse apenas o gênio que estivesse em questão;
mas não se trata apenas do gênio, é a nossa originalidade individual, a
genialidade singular que todos possuímos, cuja eficácia, cuja existência são
colocadas em questão; porque todos nós, de qualquer lugar, dos mais obscuros
aos mais famosos, inventamos, aperfeiçoamos, variamos, ao mesmo tempo que
imitamos, e não há sequer um de nós que não deixe uma marca profunda ou
imperceptível, em sua língua, em sua religião, em sua ciência ou sua arte. (TARDE, 1898, p. 35 apud LAZZARATO, 2006,
p.150).
Lazzarato (2006) em sua obra “Revoluções do capitalismo” propõe deslocar as noções de produção e
de trabalho na centralidade teórica propostas pelo marxismo, para discutir o
capitalismo e coloca a noção de invenção como importância fundamental nessa
discussão. O valor para esse autor esta quando se inventa algo.
Em encontro a essa ideia, de que intervenções estéticas
urbanas possam transformar a forma de um indivíduo pensar, no qual possa entender
nas experiências vividas nesse “acontecimento” reflexões que reverberem uma
revolução na criação de outro modo de estar,
viver e ser no mundo, pode ser considerado uma micro revolução, que acaba se
reverberando na contaminação dessa maneira de estar e ser, e que através da
arte, aconteçam inúmeras revoluções capitalísticas que mudem ou pelo menos
abalem a subjetividade capitalística dos indivíduos que experimentam as
intervenções estéticas urbanas que a arte contemporânea propõe como
manifestação contemporânea nas grandes cidades do mundo. Ou seja, a proposta de Foucault (1994) de subordinar a
existência cotidiana a um denominador estético,
[...] o problema político, ético, social e filosófico de
nossos dias não é o de tentar libertar o indivíduo do Estado e das instituições
estatais, mas de nos libertar tanto do Estado quanto do tipo de individualização que
está vinculado a ele. Precisamos promover novas formas de subjetividade
através da recusa desse tipo de individualidade que tem sido imposta a nós há
vários séculos. (FOUCAULT, 1983, p. 216)
Esse “acontecimento” que cito como as intervenções estéticas
aqui discutidas, fazem referência ao que Lazzarato (2006) apresenta numa
discussão ontológica ao colocar o “acontecimento” como ponto focal de invenção
social, de criação de mundos possíveis, defendendo assim, o processo de
experimentação e criação. O caráter imprevisível e arriscado do acontecimento é ressaltado,
e o exemplo-mor do acontecimento político são os movimentos de Seattle em 1999.
Através desta refundação ontológica, trata-se de refutar a “filosofia do
sujeito”, atribuída a autores como Kant, Hegel e Marx, em favor da “filosofia
da diferença”, cuja genealogia que passa por Leibniz, Tarde, Bergson, Deleuze e
Félix Guattari. “Acontecimentos, não mais essências: a ruptura é radical.” (IBIDEM, 2006, p. 54).
O ato de criação sendo uma singularidade, uma
diferença, uma criação de possibilidades, deve ser distinguido de seu processo
de efetuação (de repetição e propagação pela imitação) que faz dessa diferença
uma quantidade social. A efetuação ou propagação da invenção através da
imitação expressa a dimensão corporal do acontecimento, sua realização nos
agenciamentos espaço-temporais concretos. ( LAZZARATO, 2006, p.45).
Elucidando a ideia das intervenções estéticas como a capacidade do
acontecimento político como momento fundamental para abertura de possibilidades
a novos mundos possíveis, do questionamento do indivíduo imerso ao sistema,
acaba levantando uma vontade de oposição ao que já se vive, ao capitalismo e à
sociedade de controle, capturando e revelando fluxos de crenças e de desejos
contra a naturalização do sistema e reafirmando a revolução que o indivíduo pode
se propor na abertura de uma possibilidade a novos mundos possíveis.
O mundo possível existe, mas não
existe mais fora daquilo que o exprime: os slogans, as imagens capturadas por
dezenas de câmeras, as palavras que fazem circular aquilo que "acaba de acontecer"
nos jornais, na internet, nos laptops, como um contágio de vírus por todo o
planeta. O acontecimento se expressa nas almas no sentido em que produz uma
mudança de sensibilidade (transformação incorporal) que cria uma nova
avaliação: a distribuição dos desejos mudou. Vemos agora tudo aquilo que nosso
presente tem de intolerável, ao mesmo tempo que vislumbramos novas possibilidades
de vida. (LAZZARATO, 2006, p. 22).
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
FOUCAULT,
M. The subject and power. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault: beyond
structuralism and hermeneutics. 2a ed. com posfácio inédito dos autores
e entrevista de Michel Foucault. Chicago: The University of Chicago Press, 1983,
p. 208-226.
FOUCAULT,
M. À propos de la généalogie de l’éthique: un aperçu du travail em Cours . In:
Dits et écrits (1980-1988), IV, Paris: Gallimard, 1994, 609-631.
FOUCAULT, M. Une esthétique de l’existence (entrevista com
A. Fontana). In: Dits ET écrits (1980-1988), IV, Paris: Gallimard, 1994, p.
730-735.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografias do
Desejo, Petrópolis: Vozes, 1996.
LAZZARATO, M. As revoluções do capitalismo: A política no
império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
[1]
Filósofa pela UNESP, Mestra e Doutoranda em Estudos de Cultura Contemporânea
ECCO – UFMT. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa CNPQ BACO – Banalidades do
Cotidiano.
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