segunda-feira, 27 de junho de 2016

Intervenções estéticas urbanas: Revoluções Capitalísticas contaminando sujeitos.

 Maria Luisa Jimenez Jimenez (1)



O que me surpreende, em nossa sociedade, é que a arte se relacione apenas com objetos e não com indivíduos ou a vida; e que também seja um domínio especializado, um domínio de peritos, que são os artistas. Mas a vida de todo indivíduo não poderia ser uma obra de arte? Por que uma mesa ou uma casa são objetos de arte, mas nossas vidas não? (Foucault, 1994, p. 617).



Esse ensaio pretende levantar considerações sobre o sujeito contemporâneo no mundo capitalista, suas subjetividades afetadas pelo modo de vida atual nas grandes cidades e as intervenções urbanas estéticas como micro revoluções capitalísticas,  que se reverberam contaminado seus habitantes e trazendo reflexões críticas que busquem contrapor formas de dominação e controle ao exercício criativo da invenção de si mesmo num mundo possível.
O cotidiano dos que habitam as grandes cidades nas sociedades capitalistas, impulsionou diversos pensadores: Guattari e Rolnik (1996); Lazzarato ( 2006);  Foucault (1994)  a observarem  o modo de vida  nas metrópoles mundiais, entre seus pensamentos chegou-se a um consenso,  que o modo de vida de seus habitantes não poderia ser viável, e talvez, nem um pouco satisfatório uma existência sem criatividade, autonomia e felicidade.
A cidade tem se tornado o reflexo frio de nosso sistema capitalista de consumo: trânsitos insuportáveis, lugares sujos,  perigosos e impossíveis de serem habitáveis com satisfação. Hoje o morador da cidade grande prefere ficar em casa e/ou ambientes fechados, jogando, vendo televisão, no computador, comendo, protegido dessa loucura que tem se tornado as grandes cidades, e do que é estar nesse ambiente.
As praças, cadeiras nas calçadas, caminhadas pelas ruas tem sido substituídos por  lugares fechados e passeios de automóveis. Tudo é feito com muita rapidez, o tempo parece correr depressa demais e ninguém pode perder um minuto sequer para contemplar, olhar ou mesmo observar o que temos nas ruas e no nosso dia a dia.
Sobre esse comportamento repetitivo, no qual, todos seguem sem questionar sob esse comportamento alienante social nas cidades, Guattari e Rolnik (1996) nos alertam para uma “subjetividade capitalística”, que nos tem tornados robôs nesse sistema, no qual apenas o que importa é o lucro das grandes corporações, portanto o indivíduo e seu viver e ser, não estão em pauta.

O indivíduo, a meu ver, esta na encruzilhada de múltiplos componentes de subjetividade. Entre esses componentes alguns são inconscientes. Outros são mais do domínio do corpo, território no qual nos sentimos bem. Outros são mais no domínio daquilo que os sociólogos americanos chamam de "grupos primários" (o clã, o bando, a turma, etc.). Outros, ainda, são do domínio da produção de poder; situam-se em relação a lei, a policia, etc. Minha hipótese é que existe também uma subjetividade ainda mais ampla: é o que chamo de subjetividade capitalística. (GUATTARI; ROLNIK, 1996. p. 34).

Para os autores, a cultura de massa é vista como elemento fundamental da "produção de uma subjetividade capitalística”, já que é essa cultura que produz indivíduos normalizados, “articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de valores, sistemas de submissão.” (IBIDEM, 1996, p. 16). Mesmo que inconscientes esse modo de vida que acreditamos ser legitimo é uma influência voraz do sistema capitalista, que pretende garantir uma função hegemônica em nossos pensamentos, modos de agir, comportar, andar, falar, ver e saber.
Contudo, e na contramão dessa “subjetividade capitalística” que nos encontramos mergulhados,  já quase nos afogando, os mesmos autores que cito acima, propõem uma saída a partir da arte, da estética, dos atos de criação, do ocupar esses espaços abandonados, para propor a reflexão de outra maneira de estar no mundo.

No Brasil, apesar de o país estar comprometido com um processo capitalístico e estar em vias de tornar-se uma grande potencia, há imensas zonas da população “não garantida” que escapam a esse tipo de esquadrinhamento, a esse tipo de produção de subjetividade, e isso é muito importante. (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 58).

Apesar de estarmos mergulhados nesse sistema de alienação e robotização, no fundo, os sujeitos, ou quase as maiorias deles, não estão satisfeitos com esse modo de viver e estar na vida, é frustrante e causa insatisfação. Mesmo que o indivíduo não saiba o que o deixa assim, existe a sensação de incomodo e infelicidade nos convívios sociais nas grandes cidades. Visto nos noticiários diários, os exorbitantes números de pessoas que procuram ajuda médica, por depressão em suas vidas cotidianas.
Esses mesmos meios de comunicação que anunciam essa epidemia de tristeza na sociedade contemporânea, também participam na produção da “subjetividade capitalística”, já que tem grande influência e está relacionado a normalização dos corpos, da obediência, da hegemonização no pensar e agir. Para Guattari e Rolnik,

O que vai permitir o desmantelamento da produção de subjetividade capitalística e que a reapropriação dos meios de comunicação de massa se integre em agenciamentos de enunciação que tenham toda uma micropolítica e uma política no campo social. Uma rádio livre só tem interesse se ela é vinculada a um grupo de pessoas que querem mudar sua relação com a vida cotidiana, que querem mudar o tipo de relação que tem entre si no seio da própria equipe que fabrica a radio livre, que desenvolvem uma sensibilidade; pessoas que tem uma perspectiva ativa a nível desses agenciamentos e, ao mesmo tempo, não se fecham em guetos a esse nível. (IBIDEM, 1996, p.47).

Acredito, portanto, que as intervenções estéticas urbanas que acontecem cada vez mais nas grandes cidades do Brasil e do mundo, propõem a seus habitantes modificarem seus fluxos diários, podendo inclusive provocar nos indivíduos  reflexões sobre si mesmos e o processo de criatividade experimentado, faça surgir um sentimento “prazeroso”, diferenciado, que deva ser compartilhado.
Em muitos casos, esse mesmo sentimento de prazer,  possa provocar o “estar e pertencer” na cidade, inclusive,  seja desejado outras vezes e que através da contemplação e/ou participação das intervenções estéticas, possam se recriar revoluções, já que fazem com que os sujeitos pensem e reflitam nessa pré-condição capitalística de existir.
Guattari (1996, p. 46) menciona a revolução molecular como  produção “não só de uma vida coletiva, mas também da encarnação da vida para si própria, tanto no campo material, quanto no campo subjetivo.” Há, portanto uma resistência social quando saímos desse domínio normatizado e partimos para outro lugar de criação e reflexão do homem na cidade.
Acredito então, que intervenções estéticas urbanas mudem os fluxos de seus habitantes na normatização de seus corpos e pensamentos alienantes no sistema de vida atual, e que, portanto possa ser considerada uma expressão de revolução capitalística, já que transfere o indivíduo para outra lógica de estar e ser no mundo.

Eliminar o gênio é a preocupação manifesta. Poderíamos nem levar em consideração, se fosse apenas o gênio que estivesse em questão; mas não se trata apenas do gênio, é a nossa originalidade individual, a genialidade singular que todos possuímos, cuja eficácia, cuja existência são colocadas em questão; porque todos nós, de qualquer lugar, dos mais obscuros aos mais famosos, inventamos, aperfeiçoamos, variamos, ao mesmo tempo que imitamos, e não há sequer um de nós que não deixe uma marca profunda ou imperceptível, em sua língua, em sua religião, em sua ciência ou sua arte.  (TARDE, 1898, p. 35 apud LAZZARATO, 2006, p.150).

Lazzarato (2006) em sua obra “Revoluções do capitalismo” propõe deslocar as noções de produção e de trabalho na centralidade teórica propostas pelo marxismo, para discutir o capitalismo e coloca a noção de invenção como importância fundamental nessa discussão. O valor para esse autor esta quando se inventa algo.
Em encontro a essa ideia, de que intervenções estéticas urbanas possam transformar a forma de um indivíduo pensar, no qual possa entender nas experiências vividas nesse “acontecimento” reflexões que reverberem uma revolução na  criação de outro modo de estar, viver e ser no mundo, pode ser considerado uma micro revolução, que acaba se reverberando na contaminação dessa maneira de estar e ser, e que através da arte, aconteçam inúmeras revoluções capitalísticas que mudem ou pelo menos abalem a subjetividade capitalística dos indivíduos que experimentam as intervenções estéticas urbanas que a arte contemporânea propõe como manifestação contemporânea nas grandes cidades do mundo. Ou seja, a proposta de Foucault (1994) de subordinar a existência cotidiana a um denominador estético,  
[...] o problema político, ético, social e filosófico de nossos dias não é o de tentar libertar o indivíduo do Estado e das instituições estatais, mas de nos libertar tanto do Estado quanto do tipo de individualização que está vinculado a ele. Precisamos promover novas formas de subjetividade através da recusa desse tipo de individualidade que tem sido imposta a nós há vários séculos. (FOUCAULT, 1983, p. 216)

Esse “acontecimento” que cito como as intervenções estéticas aqui discutidas, fazem referência ao que Lazzarato (2006) apresenta numa discussão ontológica ao colocar o “acontecimento” como ponto focal de invenção social, de criação de mundos possíveis, defendendo assim, o processo de experimentação e criação. O caráter imprevisível e arriscado do acontecimento é ressal­tado, e o exemplo-mor do acontecimento político são os movimentos de Seattle em 1999. Através desta refundação ontológica, trata-se de refutar a “filosofia do sujeito”, atribuída a autores como Kant, Hegel e Marx, em favor da “filosofia da diferença”, cuja genealogia que passa por Leibniz, Tarde, Bergson, Deleuze e Félix Guattari. “Acontecimen­tos, não mais essências: a ruptura é radical.” (IBIDEM, 2006, p. 54).

O ato de criação sendo uma singularidade, uma diferença, uma criação de possibilidades, deve ser distinguido de seu processo de efetuação (de repetição e propagação pela imitação) que faz dessa diferença uma quantidade social. A efetuação ou propagação da invenção através da imitação expressa a dimensão corporal do acontecimento, sua realização nos agenciamentos espaço-temporais concretos. ( LAZZARATO, 2006, p.45).

Elucidando a ideia das intervenções estéticas como a capacidade do acontecimento político como momento fundamental para abertura de possibilidades a novos mundos possíveis, do questionamento do indivíduo imerso ao sistema, acaba levantando uma vontade de oposição ao que já se vive, ao capitalismo e à sociedade de controle, capturando e revelando fluxos de crenças e de desejos contra a naturalização do sistema e reafirmando a revolução que o indivíduo pode se propor na abertura de uma possibilidade a novos mundos possíveis.

O mundo possível existe, mas não existe mais fora daquilo que o exprime: os slogans, as imagens capturadas por dezenas de câmeras, as palavras que fazem circular aquilo que "acaba de acontecer" nos jornais, na internet, nos laptops, como um contágio de vírus por todo o planeta. O acontecimento se expressa nas almas no sentido em que produz uma mudança de sensibilidade (transformação incorporal) que cria uma nova avaliação: a distribuição dos desejos mudou. Vemos agora tudo aquilo que nosso presente tem de intolerável, ao mesmo tempo que vislumbramos novas possibilidades de vida.  (LAZZARATO, 2006, p. 22).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FOUCAULT, M. The subject and power. In: DREYFUS, H.; RABINOW, P. Michel Foucault: beyond structuralism and hermeneutics. 2a ed. com posfácio inédito dos autores e entrevista de Michel Foucault. Chicago: The University of Chicago Press, 1983, p. 208-226.
FOUCAULT, M. À propos de la généalogie de l’éthique: un aperçu du travail em Cours . In: Dits et écrits (1980-1988), IV, Paris: Gallimard, 1994, 609-631.
FOUCAULT, M. Une esthétique de l’existence (entrevista com A. Fontana). In: Dits ET écrits (1980-1988), IV, Paris: Gallimard, 1994, p. 730-735.
GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografias do Desejo, Petrópolis: Vozes, 1996.
LAZZARATO, M. As revoluções do capitalismo: A política no império. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.





[1] Filósofa pela UNESP, Mestra e Doutoranda em Estudos de Cultura Contemporânea ECCO – UFMT. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa CNPQ BACO – Banalidades do Cotidiano.

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