terça-feira, 28 de junho de 2016

100em1dia: A CIDADE COMO ESPAÇO DE POSSIBILIDADES



Vera Lúcia X. dos Santos


Após o sonho, partiram em busca daquela cidade; não a encontraram, mas encontraram uns aos outros; decidiram construir uma cidade como a do sonho. (ítalo Calvino, As cidades invisíveis.)


Resumo:
As cidades contemporâneas são atravessadas por subjetividades que orientam para a reprodução e incorporação de valores da racionalidade mercadológica a qual homogeniza e padroniza a cidade, bem como, os modos de viver nela. Contrariando essas subjetividades capitalistas, encontramos movimentos que desafiam esse cenário, e colocam em pauta a reivindicação por outro projeto de sociedade e cidade. Foi com a proposta de pensar a cidade de Cuiabá-MT, que realizou-se o projeto 100Em1dia, com ações de arte e cidadania realizadas em vários pontos da cidade. As ações mobilizaram e sensibilizaram as pessoas para as problemáticas da cidade, bem como, produziram subjetividades para melhorar os modos de viver nela.

Palavras-chave: Subjetividade capitalista, cidade, 100em1dia,


Uma ordem social marcada pelo grande incentivo ao crescimento econômico reflete-se em todas as esferas da vida, seja política, social, cultural. Como resultado dessa forma de organização e produção temos uma sociedade marcada pelo consumo exacerbado pela e fragmentação espacial e social.
A cidade é o espaço onde se firma a subjetividade capitalística, que estrategicamente prioriza a multiplicação e acumulação continuada do capital, que para além da produção de mercadorias, fixa relações de exploração do trabalho, impõe regras e condições que regulam a vida cotidiana.
Tornou-se imprescindível, no panorama contemporâneo, pensar as cidades como espaços para além dos padrões de concentração econômica essencialmente centrada na supervalorização da subjetividade capitalística.
Segundo Guattari e Rolnik (1996) a Subjetividade capitalística caracteriza-se fundamentalmente pela adoção da máxima rentabilidade, da multiplicação do capital em detrimento da vida, nesse formato o homem atua sob certos princípios de valores que padronizam, articulam e subjugam, de modo a sustentar o sistema em vigor.
Em um movimento contrário a subjetividade capitalista, tem-se buscado outras formas de enxergar, experimentar e estar na cidade, bem como, criar outros modos de estar no mundo, sentir e agir para além do eixo capitalista.Dessa forma um grande desafio hoje está em conciliar a cidade desenvolvida/moderna e ao mesmo tempo promover a qualidade de vida das pessoas, aliando a isso a preocupação com manutenção do meio ambiente. Busca-se também assegurar a legitimação dos valores, experiências e modos de viver, reconfigurando assim os espaços e o cotidiano da cidade.
Pensar a vida enquanto potência e movimento, transpassada por processos que singularizam as subjetividades é a ação reativa e de enfrentamento ao processo de subjetivação capitalista. A singularização das subjetividades pode ser entendida como desejos de soltar as amarras dos valores que nos são impostos e naturalizados, mas com os quais não compartilhamos.


O que chamo de processos de singularização é algo que frustra esses mecanismos de interiorização dos valores capitalísticos, algo que pode conduzir à afirmação de valores num registro particular, independentemente das escalas de valor que nos cercam e espreitam por todos os lados. (Guattari & Rolnik, 1996, p. 47).


Processos de singularização promovem deslocamentos de ideias e novas reflexões através de estratégias criativas que possibilitam reiventar e recriar as relações, com o outro, consigo mesmo e com o mundo.  
Cada vez mais surgem movimentos que vão desde pequenas ações a grandes acontecimentos em diversos pontos do mundo, movimentos de resistência às subjetividades capitalísticas. Esses movimentos tentam problematizar e repensar o cenário contemporâneo, incorporando um outro modo de pensar, criar, sentir, enfim, abrindo espaço para o surgimento de possibilidades.

O possível é assim produção do novo. Abrir-se ao possível é acolher, tal como acontece quando nos apaixonamos por alguém, a emergência de uma descontinuidade de nossa experiência; e construir, a partir da nova sensibilidade que o encontro com o outro proporciona, uma nova relação, um novo agenciamento. (LAZZARATO, 2006, p 18)


Relacionar-se com a cidade e seus espaços de forma diferente, com olhares de estranhamento e afetividade, encantar-se. Sentir e experimentar, poeticamente, a cidade que na maior parte do tempo, acorrenta e sufoca.  A arte de rua, performances e tantos outros movimentos artísticos são formas de possibilitar um novo experimentar e sentir, bem como, promovem a cidade como espaço mais humanizado. Entre esses movimentos está 100em1dia, surgido em Bogotá e que já foi realizado em vários lugares do mundo.

O 100em1dia é um movimento mundial que acredita na potencialidade da iniciativa criativa e nas habilidades dos habitantes da cidade para melhorar os modos de viver nela. Surgiu em Bogotá em 2012 e já se espalhou pelo planeta: Kopenhagen, Toronto, Milão, Montreal, Santiago do Chile, Genebra, Cidade do Cabo entre outras. No Brasil, Rio de Janeiro e Blumenau. Cuiabá será a 3ª cidade brasileira e a 28ª cidade do mundo a realizar o 100em1dia[1].

Cuiabá, capital do Mato Grosso está localizada na região centro-oeste do país, com uma população estimada 580.489 de acordo com dados do IBGE (2015). A cidade é hoje um centro de negócios, uma vez que o estado do Mato Grosso é um dos maiores produtores agrícolas, como milho, feijão com destaque para produção de soja.
Seguindo a ideia de uma cidade possível de ser reinventada, o projeto 100em1dia realizado no dia 03 de abril de 2016 em Cuiabá. O projeto lançou o convite/desafio a todos que não se conformam com o que está posto, que desejam o novo com todas suas possibilidades de reiventar, criar, mostrar e que desejam, portanto, uma cidade melhor.
A proposta foi realizar cem ações em um dia, ações de arte e cidadania em distintos pontos e das mais diversas naturezas, tais como, caminhadas, jogos, limpeza de rios, recital de poesias, performances, teatro, entre outros. O importante foi participar em qualquer lugar, de qualquer ação.
Segundo reflexão de (AZEVEDO, 2013, p.08) É na força das intersecções entre várias artes: cênicas, artes do corpo, visuais, plásticas, performances, música, entre outras, que esses coletivos se apropriam da cidade e compartilham sensibilidades”. A realização do projeto foi um acontecimento de ação e reação, movimento, encontro e desencontros, mas, sobretudo de perceber e olhar a cidade através de outras angulações.
Assim, colocamos o 100em1dia não como apenas um evento, mas como um acontecimento para cidade, pois mobilizou e afetou as pessoas, além de ter pautado questões importantes e urgentes para a Cuiabá. O 100em1dia movimentou e problematizou a cidade com mais de cem ações desenvolvidas, algumas, inclusive, estão tendo desdobramentos. E muito embora, não tenha ressoado ao poder público, certamente sensibilizou muitas pessoas.
Dentre as inúmeras ações, participamos da CRIONÇAS de João Sebastião, a ação foi idealizada pelo GPPIN- Grupo de Pesquisa em Psicologia da infância do PPGE-Programa de Pós-graduação em Educação, em parceria com alunas do Programa de Pós-graduação Ecco- Estudos de Cultura Contemporânea, ambos da UFMT. A oficina realizada na Escola Municipal Silva Freire no Bairro Itapajé – Cuiabá e consistia na exposição da obra do autor para crianças, as quais faziam uma leitura/interpretação das pinturas para em seguida inventarem suas obras. A partir das interpretações das telas, elementos simbólicos da terra, tais como, onças, cajus, rios azuis, violas de cocho, peixes, “saltavam” das telas do artista.

Imagem 01: Nas telas de João Sebastião, sobressaem elementos representativos, como o pote, o caju, a onça.

Mulher com rosto de onça? Onça com rosto de mulher? Devanear e deixar a imaginação correr solta. Encantar pelas cores, formas e desenhos, mas também refletir a cidade a partir das telas.

Imagem 02: Formas híbridas de onça e mulher.


Imagem 03: Na pintura elementos culturais e naturais, como a viola de cocho,  onça e rios. 

O rio não é tão azul! Disse uma criança lembrando que os rios da cidade estão sujos e poluídos. Quando questionadas sobre o que é preciso para se ter uma cidade melhor, uma criança falou: SOMBRAS!  Cuiabá, como tantas outras cidades, segue o discurso de modernidade que prioriza as construções, em detrimento da natureza, a derrubada de árvores, consequentemente, faz diminuírem as “sombras” e aumentar o calor.
Também ouviu-se: ÁGUA! LUZ! As respostas dadas pelas crianças evidenciam os problemas sociais da cidade que as afetam diretamente. Nas cidades contemporâneas, moradores de bairros de periferia pobre, sofrem sem acesso aos serviços mais básicos e em Cuiabá não é diferente, como se percebe através das falas das crianças.
 As pinturas de João Sebastião destacam elementos culturais e naturais característicos de Cuiabá, o que proporcionou a apreciação das obras pelas crianças, mas também, a percepção de diferenças, mudanças e necessidades do contexto atual.
No segundo momento da oficina as crianças puderam pintar e criar suas próprias obras, fazendo da sala de aula um atelier, um espaço de experimentação, diversão, arte e possibilidades...

Imagem 04: Crianças participando da ação “Crionças”
Fonte: Silvia Davies

A dinâmica das cidades exigem adaptação e readaptação permanentes às normatizações, as ações do 100em1dia, ofereceram um exercício de ruptura dessas amarras. O projeto mobilizou pessoas e esforços na criação de experiências que colocam as pessoas em contato com o outro e com a cidade, compartilhando ideias e subjetividades que potencializam um novo contorno em relação aos modos de estar e viver a cidade. Corrobora essa ideia a reflexão de Mongin (2009, p.33) quando infere que “A experiência urbana se inscreve em um lugar que torna possíveis, práticas, movimentos, ações, pensamentos, danças, cantos, sonhos”.
O desafio de promover uma cidade melhor ainda está posto, é um desafio diário e imperativo.  Mas, para além dos conflitos e problemáticas que se apresentam na cidade contemporânea, a cidade também é o espaço das possibilidades. Possibilidades de mudar, melhorar e criar novas situações.
É preciso lembrar que a cidade é mais que o conjunto de construções, ruas, avenidas e automóveis, negócios, e não apenas se resumir a um território material e físico, pois ela é também mental, imaginário e relações, Mongin (2009). Ela é, sobretudo, feita por quem mora nela, de forma que são as pessoas que podem transformar e transformar-se, e buscar possibilidades de uma vida melhor na sua cidade.


REFERÊNCIAS:

AZEVEDO, Maria Thereza. Passeio de sombrinhas: poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade. Disponível em: publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/magistro/article/view/2181/1007Acesso: 23/05/2016.


GUATTARI, Félix, ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias dos desejos. Petropólis: Vozes, 1996.

LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

MONGIN, Olivier. A condição urbana: a cidade na era da globalização. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

Sites consultados:






Nenhum comentário:

Postar um comentário