Vera Lúcia X.
dos Santos
Após
o sonho, partiram em busca daquela cidade; não a encontraram, mas encontraram
uns aos outros; decidiram construir uma cidade como a do sonho. (ítalo Calvino,
As cidades invisíveis.)
Resumo:
As
cidades contemporâneas são atravessadas por subjetividades que orientam para a
reprodução e incorporação de valores da racionalidade mercadológica a qual
homogeniza e padroniza a cidade, bem como, os modos de viver nela. Contrariando
essas subjetividades capitalistas, encontramos movimentos que desafiam esse
cenário, e colocam em pauta a reivindicação por outro projeto de sociedade e
cidade. Foi com a proposta de pensar a cidade de Cuiabá-MT, que realizou-se o
projeto 100Em1dia, com ações de arte e cidadania realizadas em vários pontos da
cidade. As ações mobilizaram e sensibilizaram as pessoas para as problemáticas
da cidade, bem como, produziram subjetividades para
melhorar os modos de viver nela.
Palavras-chave: Subjetividade
capitalista, cidade, 100em1dia,
Uma ordem social
marcada pelo grande incentivo ao crescimento econômico reflete-se em todas as
esferas da vida, seja política, social, cultural. Como resultado dessa forma de
organização e produção temos uma sociedade marcada pelo consumo exacerbado pela
e fragmentação espacial e social.
A cidade é o espaço onde se firma
a subjetividade capitalística, que estrategicamente prioriza a multiplicação e
acumulação continuada do capital, que para além da produção de mercadorias,
fixa relações de exploração do trabalho, impõe regras e condições que regulam a
vida cotidiana.
Tornou-se
imprescindível, no panorama contemporâneo, pensar as cidades como espaços para
além dos padrões de concentração econômica essencialmente centrada na
supervalorização da subjetividade capitalística.
Segundo Guattari e
Rolnik (1996) a Subjetividade capitalística caracteriza-se fundamentalmente
pela adoção da máxima rentabilidade, da multiplicação do capital em detrimento
da vida, nesse formato o homem atua sob certos princípios de valores que
padronizam, articulam e subjugam, de modo a sustentar o sistema em vigor.
Em um movimento contrário a
subjetividade capitalista, tem-se buscado outras formas de enxergar,
experimentar e estar na cidade, bem como, criar outros modos de estar no mundo,
sentir e agir para além do eixo capitalista.Dessa forma um grande
desafio hoje está em conciliar a cidade desenvolvida/moderna e ao mesmo tempo
promover a qualidade de vida das pessoas, aliando a isso a preocupação com
manutenção do meio ambiente. Busca-se também
assegurar a legitimação dos valores, experiências e modos de viver, reconfigurando
assim os espaços e o cotidiano da cidade.
Pensar a vida enquanto potência e movimento, transpassada por processos
que singularizam as subjetividades é a ação reativa e de enfrentamento ao
processo de subjetivação capitalista. A singularização das subjetividades pode
ser entendida como desejos de soltar as amarras dos valores que nos são
impostos e naturalizados, mas com os quais não compartilhamos.
O
que chamo de processos de singularização é algo que frustra esses mecanismos de
interiorização dos valores capitalísticos, algo que pode conduzir à afirmação
de valores num registro particular, independentemente das escalas de valor que
nos cercam e espreitam por todos os lados. (Guattari & Rolnik, 1996, p.
47).
Processos de singularização
promovem deslocamentos de ideias e novas reflexões através de estratégias
criativas que possibilitam reiventar e recriar as relações, com o outro,
consigo mesmo e com o mundo.
Cada vez mais surgem movimentos
que vão desde pequenas ações a grandes acontecimentos em diversos pontos do
mundo, movimentos de resistência às subjetividades capitalísticas. Esses
movimentos tentam problematizar e repensar o cenário contemporâneo,
incorporando um outro modo de pensar, criar, sentir, enfim, abrindo espaço para
o surgimento de possibilidades.
O possível é assim produção do novo. Abrir-se ao
possível é acolher, tal como acontece quando nos apaixonamos por alguém, a
emergência de uma descontinuidade de nossa experiência; e construir, a partir
da nova sensibilidade que o encontro com o outro proporciona, uma nova relação,
um novo agenciamento. (LAZZARATO, 2006, p 18)
Relacionar-se com a cidade e seus
espaços de forma diferente, com olhares de estranhamento e afetividade,
encantar-se. Sentir e experimentar, poeticamente, a cidade que na maior parte
do tempo, acorrenta e sufoca. A arte de rua, performances e tantos outros
movimentos artísticos são formas de possibilitar um novo experimentar e sentir,
bem como, promovem a cidade como espaço mais humanizado. Entre esses movimentos
está 100em1dia, surgido em Bogotá e que já foi realizado em vários lugares do
mundo.
O
100em1dia é um movimento mundial que acredita na potencialidade da
iniciativa criativa e nas habilidades dos habitantes da cidade para melhorar os
modos de viver nela. Surgiu em Bogotá em 2012 e já se espalhou pelo planeta:
Kopenhagen, Toronto, Milão, Montreal, Santiago do Chile, Genebra, Cidade do
Cabo entre outras. No Brasil, Rio de Janeiro e Blumenau. Cuiabá será a 3ª
cidade brasileira e a 28ª cidade do mundo a realizar o 100em1dia[1].
Cuiabá, capital do Mato Grosso está localizada na região centro-oeste do
país, com uma população estimada 580.489 de acordo
com dados do IBGE (2015). A cidade é hoje um centro de negócios, uma vez que o
estado do Mato Grosso é um dos maiores produtores agrícolas, como milho, feijão
com destaque para produção de soja.
Seguindo a ideia de uma cidade
possível de ser reinventada, o projeto 100em1dia realizado no dia 03 de abril
de 2016 em Cuiabá. O projeto lançou o convite/desafio a todos que não se
conformam com o que está posto, que desejam o novo com todas suas possibilidades
de reiventar, criar, mostrar e que desejam, portanto, uma cidade melhor.
A proposta foi realizar cem ações
em um dia, ações de arte e cidadania em distintos pontos e das mais diversas
naturezas, tais como, caminhadas, jogos, limpeza de rios, recital de poesias,
performances, teatro, entre outros. O importante foi participar em qualquer
lugar, de qualquer ação.
Segundo reflexão de (AZEVEDO,
2013, p.08) “É
na força das intersecções entre várias artes: cênicas, artes do corpo, visuais,
plásticas, performances, música, entre outras, que esses coletivos se apropriam
da cidade e compartilham sensibilidades”. A realização do projeto foi um
acontecimento de ação e reação, movimento, encontro e desencontros, mas, sobretudo
de perceber e olhar a cidade através de outras angulações.
Assim, colocamos o 100em1dia não
como apenas um evento, mas como um acontecimento para cidade, pois mobilizou e
afetou as pessoas, além de ter pautado questões importantes e urgentes para a
Cuiabá. O 100em1dia movimentou e problematizou a cidade com mais de cem ações
desenvolvidas, algumas, inclusive, estão tendo desdobramentos. E muito embora,
não tenha ressoado ao poder público, certamente sensibilizou muitas pessoas.
Dentre as inúmeras ações,
participamos da CRIONÇAS de João Sebastião, a ação foi idealizada pelo GPPIN-
Grupo de Pesquisa em Psicologia da infância do PPGE-Programa de Pós-graduação
em Educação, em parceria com alunas do Programa de Pós-graduação Ecco- Estudos
de Cultura Contemporânea, ambos da UFMT. A oficina realizada na Escola
Municipal Silva Freire no Bairro Itapajé – Cuiabá e consistia na exposição da
obra do autor para crianças, as quais faziam uma leitura/interpretação das
pinturas para em seguida inventarem suas obras. A partir das interpretações das
telas, elementos simbólicos da terra, tais como, onças, cajus, rios azuis,
violas de cocho, peixes, “saltavam” das telas do artista.
Imagem 01: Nas telas de João Sebastião, sobressaem elementos representativos,
como o pote, o caju, a onça.
Mulher com rosto de onça? Onça
com rosto de mulher? Devanear e deixar a imaginação correr solta. Encantar
pelas cores, formas e desenhos, mas também refletir a cidade a partir das
telas.
Imagem
02: Formas híbridas de onça e mulher.
Fonte: https://www.google.com.br
Imagem 03: Na pintura elementos culturais e naturais, como a viola de cocho, onça e rios.
Fonte: https://www.google.com.br
O rio não é tão azul! Disse uma
criança lembrando que os rios da cidade estão sujos e poluídos. Quando
questionadas sobre o que é preciso para se ter uma cidade melhor, uma criança
falou: SOMBRAS! Cuiabá, como tantas
outras cidades, segue o discurso de modernidade que prioriza as construções, em
detrimento da natureza, a derrubada de árvores, consequentemente, faz
diminuírem as “sombras” e aumentar o calor.
Também ouviu-se: ÁGUA! LUZ! As respostas dadas
pelas crianças evidenciam os problemas sociais da cidade que as afetam
diretamente. Nas cidades contemporâneas, moradores de bairros de periferia
pobre, sofrem sem acesso aos serviços mais básicos e em Cuiabá não é diferente,
como se percebe através das falas das crianças.
As pinturas de João Sebastião destacam elementos
culturais e naturais característicos de Cuiabá, o que proporcionou a apreciação
das obras pelas crianças, mas também, a percepção de diferenças, mudanças e
necessidades do contexto atual.
No segundo momento da oficina as
crianças puderam pintar e criar suas próprias obras, fazendo da sala de aula um
atelier, um espaço de experimentação, diversão, arte e possibilidades...
Imagem 04: Crianças participando da ação “Crionças”
Fonte: Silvia Davies
A dinâmica das cidades exigem
adaptação e readaptação permanentes às normatizações, as ações do 100em1dia,
ofereceram um exercício de ruptura dessas amarras. O projeto mobilizou pessoas
e esforços na criação de experiências que colocam as pessoas em contato com o
outro e com a cidade, compartilhando ideias e subjetividades que potencializam
um novo contorno em relação aos modos de estar e viver a cidade. Corrobora essa
ideia a reflexão de Mongin (2009, p.33) quando infere que “A experiência urbana
se inscreve em um lugar que torna possíveis, práticas, movimentos, ações,
pensamentos, danças, cantos, sonhos”.
O desafio de promover uma cidade
melhor ainda está posto, é um desafio diário e imperativo. Mas, para além dos conflitos e problemáticas
que se apresentam na cidade contemporânea, a cidade também é o espaço das
possibilidades. Possibilidades de mudar, melhorar e criar novas situações.
É preciso lembrar que a cidade é
mais que o conjunto de construções, ruas, avenidas e automóveis, negócios, e
não apenas se resumir a um território material e físico, pois ela é também
mental, imaginário e relações, Mongin (2009). Ela é, sobretudo, feita por quem
mora nela, de forma que são as pessoas que podem transformar e transformar-se,
e buscar possibilidades de uma vida melhor na sua cidade.
REFERÊNCIAS:
AZEVEDO,
Maria Thereza. Passeio de sombrinhas: poéticas urbanas, subjetividades
contemporâneas e modos de estar na cidade.
Disponível em: publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/magistro/article/view/2181/1007Acesso:
23/05/2016.
GUATTARI,
Félix, ROLNIK, Suely. Micropolítica:
Cartografias dos desejos. Petropólis: Vozes, 1996.
LAZZARATO,
Maurizio. As revoluções do capitalismo.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
MONGIN, Olivier. A condição urbana: a cidade na era da globalização. São Paulo:
Estação Liberdade, 2009.
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