Por Thiago Cardassi Sanches
Este trabalho emergiu a
partir das discussões empreendidas na disciplina “Tópicos especiais em poéticas
contemporâneas: estéticas emergentes na cidade”, cujo principal objetivo era o
de analisar as práticas estéticas executadas em espaços urbanos e suas manifestações
estético-performáticas. As discussões convergiram para a conclusão, ainda que
parcial, de que as performances urbanas e os processos colaborativos de criação
são capazes de inventar novas camadas de composição do tecido urbano e
funcionar como vetores de produção de singularidades.
O objeto de análise sobre
o qual a disciplina investiu as discussões foi o projeto 100em1dia realizado no
município de Cuiabá. O 100em1dia é um movimento mundial que incentiva o
desenvolvimento criativo e a prática de novas experimentações
artística-estética-política-afetivas no território urbano. Surgiu em Bogotá em
2012 e gradativamente espalhou-se pelo mundo. No Brasil, Cuiabá foi a terceira
cidade a abrigar a campanha. Os habitantes da cidade poderiam se organizar
individualmente ou em coletivo para propor ações de intervenção cidadã ou de
arte no lugar onde vive ou em espaços públicos da cidade. Para isso era
necessário o cadastramento prévio de um lista de ações a serem desenvolvidas.
Após o debate geral
sobre o evento e seus possíveis desdobramentos, decidimos por eleger uma ação
em específico para descrevê-la e analisa-la. Deste modo, pensando a partir de
Suely Rolnik (1989), que “todas as entradas são boas se as saídas forem
múltiplas” decidimos por escolher uma ação aleatória desenvolvida entre as
listadas no site para discutir uma vez que grande parte delas apresentava um excelente
potencial para levantar questões e produzir estranhamento. Optamos então por
discursar sobre a ação “Pedras do caminho”, realizada em pontos de ônibus, praças e ruas de Cuiabá.
Essa ação
consituia-se de um objetivo bastante singelo: distribuir propositalmente pedras
pintadas a mão em pontos estratégicos da cidade onde poderiam ser encontradas,
tocadas, recolhidas, ou movidas para outros espaços. Sem qualquer pretensão, a
propositora da ação, Cristina Silva, apenas desejava despertar a curiosidade ou
atenção das pessoas que por um instante olham para baixo e encontram estas
pedras “divertidas”. Desta forma, ela afirma que esta prática
busca o exercício do olhar para as coisas do chão, para os pequenos detalhes e as pequenas belezas do dia a dia, quebrar a rotina de pessoas que andam pela cidade e trazer uma pouco de poesia e beleza nesse caminhar. As pedras serão espalhadas em pontos de ônibus, praças e ruas de Cuiabá, a ideia é que sejam encontradas aleatoriamente. As pessoas que as encontrarem poderão ficar com elas, deixá-las no mesmo lugar ou em um lugar diferente para que outras pessoas as encontrem. (SILVA, 2016).
Ainda segundo a idealizadora,
existe nesta dinâmica, um movimento involuntário de fazer correr linhas tortas
e olhares inusitados para outros espaços e regiões comumente ignorados no
cotidiano. Seu interesse, neste caso, é pelas pequenas coisas do chão, pela
terra, grama mato, folhas, e pelas pedras. Tendo começado a pintar estas pedras
como presente aos amigos ou como apenas um processo próprio de experimentação,
Silva relata que sua ação se transformava aos poucos em vontade de deixá-las
por onde estivesse passando para que alguém pudesse encontra-las.
Sem um proposito muito
bem delineado ou uma finalidade a ser alcançada, a ação “Pedras do Caminho”
apresenta uma experiência muito mais de caratér afetivo do que significante.
Este terrítorio do sensível onde a preoupação não é mais uma compreensão
inteligível ou representacional do objeto/performance é um exemplo que ser
pensando enquanto ação micropolítica.
O campo de ação micropolítica se concretiza nos esforços
de criação de novos territórios do sensível e suas implicações
éticas/estéticas/políticas. Diferencia-se, portanto do aspecto macropolítico,
mas estes não devem ser entendidos como campos contraditórios, pois eles coexistem
e atravessam um ao outro. Ainda assim, elas remetem à ordens difusas de
organização. A macropolítica (ou ordem molar) corresponde ao regime das
estratificações, aos objetos, aos sujeitos, representações, identidades, e a
quaisquer sistemas de referências. A micropolítica
(ou ordem molecular), por sua vez,
trabalha na dimensão dos fluxos, dos devires, das intensidades, das conexões.
Isso não quer dizer que uma seja boa e a outra ruim, ou desejável e não
desejável. As duas dimensões são inseparáveis e trabalham sempre juntas e, no
entanto, podem não corresponder. A ação de um sujeito ou grupo pode ser
emancipatória em nível molar e profundamente reacionária em nível molecular e
vice-versa. (GUATTARI, ROLNIK, 2013).
Os regimes de
organização macropolíticos só se
tornam problemáticos quando se pretende que estes condensados, estas
referências, se tornem a única forma possível de vida, a única condição
desejável e permitida. Na experiência de caráter micropolítico, a ação se dá
nos interstícios, nas coexistências, nos encontros fragmentados capazes de
reinventar outras expressões de sensibilidade e percepção que frustram os
mecanismos de retroalimentação das subjetividades normativas, mesmo que de
maneira imperceptível. Esta dimensão da experiência é desvinculada da ordem das
representações, mas suas fraturas se manifestam em um nível muito mais sutil de
experimentação.
Na proposta em questão,
a autora se posiciona afirmando que suas pedras não possuem valor ou pretensão
artística. E, no entanto, afirma que o objetivo do seu trabalho é quebrar a
rotina das pessoas que andam pela cidade ao trazer um pouco de poesia e beleza
neste caminhar (SILVA, 2016). Deste modo, se considerarmos a prática do
estranhamento instaurada pela performance, e o apelo poético e estético que a
autora parece não reconhecer num primeiro momento, mas que reinvica na
sequência, podemos dizer que a ação elaborada possui funções estética e éticas
intrinsecas ao trabalho, já que a éstética se liga a ética justamente por meio
do ato criativo de invenção de um estilo de vida.
Acredito que não
podemos esperar que o tipo de experiência proporcionada pelo experimento seja de
caráter intrinsicamente revolucionário, pois estaríamos, desta forma, superdimensionando
suas implicações e reduzindo a potência de todo ato revolucionário. Mas, no
entanto, ainda assim podemos afirmar que neste processo de estranhamento existe
um componente que é capaz de romper (ainda que minimamente e temporariamente)
com a lógica serializada e automática de percepeção do indivíduo na cidade. Esse
efeito de desarranjo é uma das propriedades da arte cujos impacatos
micropolíticos são capazes de interferir e causar um curto-circuito na produção
social através da interferência de uma produção desejante, criando assim um
função de dessaranjo dos modelos de subjetivação normalizantes (DELEUZE;
GUATTARI, 2010), capazes de inaugurar novos vetores de singularização e uma
abertura para se pensar a diferença no cotidiano. Novas formas de olhas e de
percepção na cidade.
REFERENCIAS
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. As
máquinas desejantes. In: ______. O
anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Luiz Orlandi. São Paulo: 34, 2010. p.11-71. (Coleção TRANS).
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. p. 21-31. ISBN 978-85-326-1039-3.
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo, Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989.
SILVA, Cristina. Pedras do Caminho. Descrição da performance conforme constra no site: < http://100em1diacuiaba.org/intervencoes/pedras-do-caminho/>
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. p. 21-31. ISBN 978-85-326-1039-3.
ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo, Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989.
SILVA, Cristina. Pedras do Caminho. Descrição da performance conforme constra no site: < http://100em1diacuiaba.org/intervencoes/pedras-do-caminho/>
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