domingo, 26 de junho de 2016

Pedras do caminho: novas formas de olhar e perceber o entorno no cotidiano da cidade



Por Thiago Cardassi Sanches




Este trabalho emergiu a partir das discussões empreendidas na disciplina “Tópicos especiais em poéticas contemporâneas: estéticas emergentes na cidade”, cujo principal objetivo era o de analisar as práticas estéticas executadas em espaços urbanos e suas manifestações estético-performáticas. As discussões convergiram para a conclusão, ainda que parcial, de que as performances urbanas e os processos colaborativos de criação são capazes de inventar novas camadas de composição do tecido urbano e funcionar como vetores de produção de singularidades.
O objeto de análise sobre o qual a disciplina investiu as discussões foi o projeto 100em1dia realizado no município de Cuiabá. O 100em1dia é um movimento mundial que incentiva o desenvolvimento criativo e a prática de novas experimentações artística-estética-política-afetivas no território urbano. Surgiu em Bogotá em 2012 e gradativamente espalhou-se pelo mundo. No Brasil, Cuiabá foi a terceira cidade a abrigar a campanha. Os habitantes da cidade poderiam se organizar individualmente ou em coletivo para propor ações de intervenção cidadã ou de arte no lugar onde vive ou em espaços públicos da cidade. Para isso era necessário o cadastramento prévio de um lista de ações a serem desenvolvidas.
Após o debate geral sobre o evento e seus possíveis desdobramentos, decidimos por eleger uma ação em específico para descrevê-la e analisa-la. Deste modo, pensando a partir de Suely Rolnik (1989), que “todas as entradas são boas se as saídas forem múltiplas” decidimos por escolher uma ação aleatória desenvolvida entre as listadas no site para discutir uma vez que grande parte delas apresentava um excelente potencial para levantar questões e produzir estranhamento. Optamos então por discursar sobre a ação “Pedras do caminho”, realizada em pontos de ônibus, praças e ruas de Cuiabá.
Essa ação consituia-se de um objetivo bastante singelo: distribuir propositalmente pedras pintadas a mão em pontos estratégicos da cidade onde poderiam ser encontradas, tocadas, recolhidas, ou movidas para outros espaços. Sem qualquer pretensão, a propositora da ação, Cristina Silva, apenas desejava despertar a curiosidade ou atenção das pessoas que por um instante olham para baixo e encontram estas pedras “divertidas”. Desta forma, ela afirma que esta prática

busca o exercício do olhar para as coisas do chão, para os pequenos detalhes e as pequenas belezas do dia a dia, quebrar a rotina de pessoas que andam pela cidade e trazer uma pouco de poesia e beleza nesse caminhar. As pedras serão espalhadas em pontos de ônibus, praças e ruas de Cuiabá, a ideia é que sejam encontradas aleatoriamente. As pessoas que as encontrarem poderão ficar com elas, deixá-las no mesmo lugar ou em um lugar diferente para que outras pessoas as encontrem. (SILVA, 2016).

Ainda segundo a idealizadora, existe nesta dinâmica, um movimento involuntário de fazer correr linhas tortas e olhares inusitados para outros espaços e regiões comumente ignorados no cotidiano. Seu interesse, neste caso, é pelas pequenas coisas do chão, pela terra, grama mato, folhas, e pelas pedras. Tendo começado a pintar estas pedras como presente aos amigos ou como apenas um processo próprio de experimentação, Silva relata que sua ação se transformava aos poucos em vontade de deixá-las por onde estivesse passando para que alguém pudesse encontra-las.
Sem um proposito muito bem delineado ou uma finalidade a ser alcançada, a ação “Pedras do Caminho” apresenta uma experiência muito mais de caratér afetivo do que significante. Este terrítorio do sensível onde a preoupação não é mais uma compreensão inteligível ou representacional do objeto/performance é um exemplo que ser pensando enquanto ação micropolítica.
O campo de ação micropolítica se concretiza nos esforços de criação de novos territórios do sensível e suas implicações éticas/estéticas/políticas. Diferencia-se, portanto do aspecto macropolítico, mas estes não devem ser entendidos como campos contraditórios, pois eles coexistem e atravessam um ao outro. Ainda assim, elas remetem à ordens difusas de organização. A macropolítica (ou ordem molar) corresponde ao regime das estratificações, aos objetos, aos sujeitos, representações, identidades, e a quaisquer sistemas de referências. A micropolítica (ou ordem molecular), por sua vez, trabalha na dimensão dos fluxos, dos devires, das intensidades, das conexões. Isso não quer dizer que uma seja boa e a outra ruim, ou desejável e não desejável. As duas dimensões são inseparáveis e trabalham sempre juntas e, no entanto, podem não corresponder. A ação de um sujeito ou grupo pode ser emancipatória em nível molar e profundamente reacionária em nível molecular e vice-versa. (GUATTARI, ROLNIK, 2013).
Os regimes de organização macropolíticos só se tornam problemáticos quando se pretende que estes condensados, estas referências, se tornem a única forma possível de vida, a única condição desejável e permitida. Na experiência de caráter micropolítico, a ação se dá nos interstícios, nas coexistências, nos encontros fragmentados capazes de reinventar outras expressões de sensibilidade e percepção que frustram os mecanismos de retroalimentação das subjetividades normativas, mesmo que de maneira imperceptível. Esta dimensão da experiência é desvinculada da ordem das representações, mas suas fraturas se manifestam em um nível muito mais sutil de experimentação.
Na proposta em questão, a autora se posiciona afirmando que suas pedras não possuem valor ou pretensão artística. E, no entanto, afirma que o objetivo do seu trabalho é quebrar a rotina das pessoas que andam pela cidade ao trazer um pouco de poesia e beleza neste caminhar (SILVA, 2016). Deste modo, se considerarmos a prática do estranhamento instaurada pela performance, e o apelo poético e estético que a autora parece não reconhecer num primeiro momento, mas que reinvica na sequência, podemos dizer que a ação elaborada possui funções estética e éticas intrinsecas ao trabalho, já que a éstética se liga a ética justamente por meio do ato criativo de invenção de um estilo de vida.
Acredito que não podemos esperar que o tipo de experiência proporcionada pelo experimento seja de caráter intrinsicamente revolucionário, pois estaríamos, desta forma, superdimensionando suas implicações e reduzindo a potência de todo ato revolucionário. Mas, no entanto, ainda assim podemos afirmar que neste processo de estranhamento existe um componente que é capaz de romper (ainda que minimamente e temporariamente) com a lógica serializada e automática de percepeção do indivíduo na cidade. Esse efeito de desarranjo é uma das propriedades da arte cujos impacatos micropolíticos são capazes de interferir e causar um curto-circuito na produção social através da interferência de uma produção desejante, criando assim um função de dessaranjo dos modelos de subjetivação normalizantes (DELEUZE; GUATTARI, 2010), capazes de inaugurar novos vetores de singularização e uma abertura para se pensar a diferença no cotidiano. Novas formas de olhas e de percepção na cidade.


REFERENCIAS

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. As máquinas desejantes. In: ______. O  anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Luiz Orlandi. São Paulo: 34, 2010. p.11-71. (Coleção TRANS).

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 12. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. p. 21-31. ISBN 978-85-326-1039-3.

ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo, Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989.

SILVA, Cristina. Pedras do Caminho. Descrição da performance conforme constra no site: < http://100em1diacuiaba.org/intervencoes/pedras-do-caminho/>

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