Angélica de Almeida Costa
A
fotografia é um instrumento de representação e perpetuação da imagem, criou uma
nova e mais complexa relação das pessoas com a realidade e consigo mesmas,
possibilitando transformar o mundo material em representação. Após o advento da
fotografia, o mundo tornou-se de certa forma “familiar”, já que o homem passou
a ter um conhecimento mais amplo de outras realidades que até então lhe eram
transmitidas unicamente pela tradição verbal, escrita e pictórica. Este ensaio
pretende levantar reflexões acerca do acesso às experiências das ações do
evento 100 em 1 dia Cuiabá através das imagens fotográficas.
Boris
Kossoy (1941) afirma que a fotografia tem um papel fundamental enquanto
possibilidade de informação e conhecimento, instrumento de apoio à pesquisa e
também como forma de expressão artística.
Por meio da imagem é possível recuperar
memórias e detalhes da história, os lugares e eventos se
tornam conhecidos e de certa forma próximos. Através de imagens temos a sensação de pertencimento,
elas contaminam e de certa forma anestesiam as sensações que poderíamos sentir
ao ver as coisas “ao vivo”. Susan Sontag (2004) afirma que a promessa da
fotografia é democratizar todas as experiências ao traduzi-las em imagens.
A
fotografia e outras imagens técnicas, para Vilém Flusser, são produtos de
aparelhos que foram inventados com o propósito de informar.
“Informar! É a resposta que o homem
lança contra a morte. Pois é de tal busca da imortalidade que nasceram, entre
outras coisas, os aparelhos produtores de imagens. O propósito dos aparelhos é
o de criar, preservar e transmitir informações. Nesse sentido, as imagens
técnicas são represas de informação a serviço da nossa imortalidade” (FLUSSER,
2008, p.32)
O registro fotográfico é impregnado pelo
olhar do fotógrafo, que mostra sua interpretação dos acontecimentos e
possibilita que cada leitor também tenha sua visão particular da imagem. Sendo
assim, esse ensaio se torna uma interpretação pessoal sobre as experiências
possibilitadas através das fotografias das ações de arte e cidadania que
aconteceram no evento 100 em 1 dia Cuiabá.
100 em 1 dia: ações capturadas
O
movimento mundial 100 em 1 dia propõe
melhorar os modos de vida na cidade através das iniciativas de arte e cidadania
dos habitantes. Surgiu em Bogotá em 2012 e contou com sua primeira edição em
Cuiabá em abril de 2016. Meses antes da data programada para as ações, já havia
divulgações, reuniões e chamadas para participação de artistas, ativistas,
estudantes, fotógrafos e cidadãos em geral. Através das redes sociais as
pessoas foram se contaminando com a ideia, aderindo e sugerindo ações para
melhorar as condições da cidade. As sugestões foram as mais variadas, desde
performances artísticas até limpeza de ambientes públicos e com condições
precárias de higiene.
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Descida de downhill no Morro da Luz.
Área verde abandonada no coração da cidade.
Foto: Gilberto Galdino
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Cuiabá
é uma cidade quente e que se encontra relativamente abandonada pelo poder público,
tem a fama de cidade verde, sendo que não existem muitos espaços arborizados,
as poucas arvores dos canteiros centrais foram derrubadas para dar espaço a
construções inacabadas devido a demanda de obras para a copa de 2014. A cidade
tem um triste histórico de gestões ineficientes do poder público, que raramente
se preocupa com o bem-estar de seus habitantes, deixando de lado a devida
manutenção de espaços de lazer. As pessoas abraçaram a causa, se despertaram
para a responsabilidade cidadã e organizaram plantio de árvores, revitalização
de hospital psiquiátrico e centro de zoonoses, ocupação de espaços, doações de
roupas e calçados para pessoas em condição de rua, limpeza de praças, parques, roda
de conversas, danças, piquenique, mostra de vídeo e tantas outras ações que
ultrapassaram a marca das 100 inicialmente pensadas.
A
cidade é o lugar do encontro, de vivências e de trocas materiais e simbólicas.
As intervenções urbanas organizadas em torno do 100 em 1 dia Cuiabá procuravam criticar os modos de utilização do
espaço, reinventar seus usos, pensar e sentir a cidade de formas diferentes das
habituais. Vivemos uma cultura do instantâneo, permeada pela velocidade das
trocas que nos impossibilita de ver em profundidade a cidade que habitamos. Milton
Santos, (2000, citado por RIBEIRO, 2012) afirma que a força é dos lentos,
homens que contradizem o frenesi da competitividade cotidiana ao dar atenção
para as subjetividades, criatividades e solidariedades. Os homens lentos
conseguem sentir e de fato experimentar os locais que habitam e conhecem, vão
na contramão da velocidade cotidiana e enxergam o que passa despercebido para a
maioria imersa na cultura do instantâneo. No dia das ações do 100 em 1 dia
Cuiabá, conseguimos ser lentos e experimentar a cidade, olhamos a nossa volta e
nos despertamos para aquilo que cotidianamente passa despercebido.
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Balanços no Viaduto: ocupação de lazer em um grande espaço, fresco e sem utilidade no dia-a-dia. Oportunidade para reinventar os lugares públicos.
Foto: Angélica Almeida
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Tantas
intervenções de arte e cidadania em um único dia precisavam de registro, de
serem fotografadas, informadas e perpetuadas. Sendo assim, um grupo para
organizar os registros fotográficos foi formado, afinal nada poderia ficar de
fora, as pessoas precisavam saber e sentir tudo o que essas ações representavam
e as fotos estão aí para cumprir este propósito. Ao menos vinte e cinco
fotógrafos profissionais se prontificaram a percorrer a cidade com seus olhares
atentos e sensíveis às intervenções que ocorreram naquele domingo incomum,
também participantes munidos de câmeras digitais e celulares se comprometeram a
fazer os registros das ações.
Nas
reuniões que antecederam o grande dia várias ideias surgiram, como as propostas
de um catálogo e uma exposição com as fotos, assim teríamos os registros em
meio material, sairiam da virtualidade das redes para a contemplação mais atenta.
É importante que as fotos sejam impressas e expostas, com a digitalização das
imagens e a rápida difusão nas redes quase não paramos para sentir e pensar
sobre a representação das fotografias.
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Revitalização
do pátio do hospital psiquiátrico Adauto Botelho. Dia voltado para a melhora da qualidade de
vida dos internos.
Foto: Angélica Almeida
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A
fotografia é vista habitualmente como um instrumento para conhecer as coisas,
Susan Sontag (2004) afirma que uma foto não é apenas uma imagem, uma
interpretação do real, mas é também um vestígio, algo diretamente decalcado do
real, como uma pegada.
“Fotos são um meio de
aprisionar a realidade, entendida como recalcitrante, inacessível; de fazê-la
parar. Ou ampliam a realidade, tida por encurtada, esvaziada, perecível,
remota. Não se pode possuir a realidade, mas pode-se possuir imagens (e ser
possuído por elas). ” (SONTAG, 2004, p.180)
As ações começaram por volta de meia
noite, com 100 balões brancos sendo soltos e marcando a abertura das atividades
que seguiram por todo o dia 3 de abril de 2016. Cada fotógrafo registrou as
ações que mais lhe interessaram e os momentos marcantes que pudessem transmitir
as sensibilidades de cada intervenção artística e cidadã.
As fotografias das ações foram sendo
organizadas pelos próprios fotógrafos em uma rede social voltada exclusivamente
para fotografia, o Flickr. Cada ação com seu álbum, descrição e créditos de
quem fez os cliques. Os álbuns são abertos e quem não conseguiu participar do
movimento pode contemplar as fotos e mesmo que de forma remota, fazer parte das
ações que ficaram perpetuadas. Assim sendo, os registros do movimento 100 em 1
dia Cuiabá democratizam a experiência das ações, pois ao
visualizar as fotografias conseguimos conhecer e de alguma forma sentir que
também estávamos presentes, pois a foto evidencia o sentimento de pertencimento
ao lugar.
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Apresentação de dança cigana na Casa
Cuiabana
Foto:
Suzana
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Durante todo o dia os fotógrafos
percorreram a cidade, armados com suas câmeras, ávidos por capturar aqueles
instantes de cuidado e atenção com Cuiabá. Através de um grupo de mensagens
instantâneas íamos trocando informações sobre a movimentação dos locais, quais
ações estavam acontecendo, quais tinham público e qual seria a próxima a ser
registrada. Durante toda a manhã permaneci no hospital psiquiátrico Adauto
Botelho, onde aconteciam várias ações como pintura do mural do pátio, plantio
de árvore, música e poesia. No período da tarde participei das ações de
ocupação do viaduto da Avenida Fernando Correa, o viaduto foi construído para a
Copa do Mundo de 2014 e as obras não foram devidamente finalizadas, há um
espaço enorme na parte de baixo do viaduto, espaço fresco e sem utilidade
alguma no cotidiano da cidade. As ações foram de lazer com a instalação de
balanços e um churrasco, mas também foram de contestação com cartazes e lambes
criticando aquele espaço.
As
imagens fotográficas participam da vulnerabilidade das coisas ao congelar o
momento e imortalizar a representação, o movimento 100 em dia Cuiabá conta com belas imagens, feitas por olhares que
se preocuparam com a autoestima da cidade ao fotografar as ações onde ela
recebe carinho e atenção. As ações sempre serão lembradas através de fotos que
preservam a memória, democratizam as experiências e podem despertar para que
novas ações ocorram continuamente na cidade. Afinal, o mundo-imagem sobrevive a
todos nós.
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Reviver São Gonçalo, limpeza e plantio de árvores na barranca do Rio Cuiabá
Foto: Célia Soares
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Referências Bibliográficas
FLUSSER,
Vilém. O universo das imagens técnicas:
elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 2
ed. rev. São Paulo : Ateliê Editorial, 2001.
PAULA, Dalvit Greiner.
Intervenções urbanas: a arte aponta para o futuro. Revista Confluências
Culturais. V.3 N.2.
RIBEIRO, Ana Clara
Torres. Homens lentos, opacidades e rugosidades. Revista Redobra nº 9, 2012.
SONTAG, Susan. Sobre
Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
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