terça-feira, 28 de junho de 2016

A fotografia como acesso às ações do 100 em 1 dia Cuiabá

Angélica de Almeida Costa

A fotografia é um instrumento de representação e perpetuação da imagem, criou uma nova e mais complexa relação das pessoas com a realidade e consigo mesmas, possibilitando transformar o mundo material em representação. Após o advento da fotografia, o mundo tornou-se de certa forma “familiar”, já que o homem passou a ter um conhecimento mais amplo de outras realidades que até então lhe eram transmitidas unicamente pela tradição verbal, escrita e pictórica. Este ensaio pretende levantar reflexões acerca do acesso às experiências das ações do evento 100 em 1 dia Cuiabá através das imagens fotográficas.
Boris Kossoy (1941) afirma que a fotografia tem um papel fundamental enquanto possibilidade de informação e conhecimento, instrumento de apoio à pesquisa e também como forma de expressão artística. Por meio da imagem é possível recuperar memórias e detalhes da história, os lugares e eventos se tornam conhecidos e de certa forma próximos. Através de imagens temos a sensação de pertencimento, elas contaminam e de certa forma anestesiam as sensações que poderíamos sentir ao ver as coisas “ao vivo”. Susan Sontag (2004) afirma que a promessa da fotografia é democratizar todas as experiências ao traduzi-las em imagens.
A fotografia e outras imagens técnicas, para Vilém Flusser, são produtos de aparelhos que foram inventados com o propósito de informar.
“Informar! É a resposta que o homem lança contra a morte. Pois é de tal busca da imortalidade que nasceram, entre outras coisas, os aparelhos produtores de imagens. O propósito dos aparelhos é o de criar, preservar e transmitir informações. Nesse sentido, as imagens técnicas são represas de informação a serviço da nossa imortalidade” (FLUSSER, 2008, p.32)
O registro fotográfico é impregnado pelo olhar do fotógrafo, que mostra sua interpretação dos acontecimentos e possibilita que cada leitor também tenha sua visão particular da imagem. Sendo assim, esse ensaio se torna uma interpretação pessoal sobre as experiências possibilitadas através das fotografias das ações de arte e cidadania que aconteceram no evento 100 em 1 dia Cuiabá.
100 em 1 dia: ações capturadas
O movimento mundial 100 em 1 dia propõe melhorar os modos de vida na cidade através das iniciativas de arte e cidadania dos habitantes. Surgiu em Bogotá em 2012 e contou com sua primeira edição em Cuiabá em abril de 2016. Meses antes da data programada para as ações, já havia divulgações, reuniões e chamadas para participação de artistas, ativistas, estudantes, fotógrafos e cidadãos em geral. Através das redes sociais as pessoas foram se contaminando com a ideia, aderindo e sugerindo ações para melhorar as condições da cidade. As sugestões foram as mais variadas, desde performances artísticas até limpeza de ambientes públicos e com condições precárias de higiene.

Descida de downhill no Morro da Luz. Área verde abandonada no coração da cidade.
 Foto: Gilberto Galdino

Cuiabá é uma cidade quente e que se encontra relativamente abandonada pelo poder público, tem a fama de cidade verde, sendo que não existem muitos espaços arborizados, as poucas arvores dos canteiros centrais foram derrubadas para dar espaço a construções inacabadas devido a demanda de obras para a copa de 2014. A cidade tem um triste histórico de gestões ineficientes do poder público, que raramente se preocupa com o bem-estar de seus habitantes, deixando de lado a devida manutenção de espaços de lazer. As pessoas abraçaram a causa, se despertaram para a responsabilidade cidadã e organizaram plantio de árvores, revitalização de hospital psiquiátrico e centro de zoonoses, ocupação de espaços, doações de roupas e calçados para pessoas em condição de rua, limpeza de praças, parques, roda de conversas, danças, piquenique, mostra de vídeo e tantas outras ações que ultrapassaram a marca das 100 inicialmente pensadas.
A cidade é o lugar do encontro, de vivências e de trocas materiais e simbólicas. As intervenções urbanas organizadas em torno do 100 em 1 dia Cuiabá procuravam criticar os modos de utilização do espaço, reinventar seus usos, pensar e sentir a cidade de formas diferentes das habituais. Vivemos uma cultura do instantâneo, permeada pela velocidade das trocas que nos impossibilita de ver em profundidade a cidade que habitamos. Milton Santos, (2000, citado por RIBEIRO, 2012) afirma que a força é dos lentos, homens que contradizem o frenesi da competitividade cotidiana ao dar atenção para as subjetividades, criatividades e solidariedades. Os homens lentos conseguem sentir e de fato experimentar os locais que habitam e conhecem, vão na contramão da velocidade cotidiana e enxergam o que passa despercebido para a maioria imersa na cultura do instantâneo. No dia das ações do 100 em 1 dia Cuiabá, conseguimos ser lentos e experimentar a cidade, olhamos a nossa volta e nos despertamos para aquilo que cotidianamente passa despercebido.

Balanços no Viaduto: ocupação de lazer em um grande espaço, fresco e sem utilidade no dia-a-dia. Oportunidade para reinventar os lugares públicos. 
Foto: Angélica Almeida
Tantas intervenções de arte e cidadania em um único dia precisavam de registro, de serem fotografadas, informadas e perpetuadas. Sendo assim, um grupo para organizar os registros fotográficos foi formado, afinal nada poderia ficar de fora, as pessoas precisavam saber e sentir tudo o que essas ações representavam e as fotos estão aí para cumprir este propósito. Ao menos vinte e cinco fotógrafos profissionais se prontificaram a percorrer a cidade com seus olhares atentos e sensíveis às intervenções que ocorreram naquele domingo incomum, também participantes munidos de câmeras digitais e celulares se comprometeram a fazer os registros das ações.
           Nas reuniões que antecederam o grande dia várias ideias surgiram, como as propostas de um catálogo e uma exposição com as fotos, assim teríamos os registros em meio material, sairiam da virtualidade das redes para a contemplação mais atenta. É importante que as fotos sejam impressas e expostas, com a digitalização das imagens e a rápida difusão nas redes quase não paramos para sentir e pensar sobre a representação das fotografias.

Revitalização do pátio do hospital psiquiátrico Adauto Botelho.  Dia voltado para a melhora da qualidade de vida dos internos. 
Foto: Angélica Almeida
            A fotografia é vista habitualmente como um instrumento para conhecer as coisas, Susan Sontag (2004) afirma que uma foto não é apenas uma imagem, uma interpretação do real, mas é também um vestígio, algo diretamente decalcado do real, como uma pegada.
“Fotos são um meio de aprisionar a realidade, entendida como recalcitrante, inacessível; de fazê-la parar. Ou ampliam a realidade, tida por encurtada, esvaziada, perecível, remota. Não se pode possuir a realidade, mas pode-se possuir imagens (e ser possuído por elas). ” (SONTAG, 2004, p.180)
As ações começaram por volta de meia noite, com 100 balões brancos sendo soltos e marcando a abertura das atividades que seguiram por todo o dia 3 de abril de 2016. Cada fotógrafo registrou as ações que mais lhe interessaram e os momentos marcantes que pudessem transmitir as sensibilidades de cada intervenção artística e cidadã.
  As fotografias das ações foram sendo organizadas pelos próprios fotógrafos em uma rede social voltada exclusivamente para fotografia, o Flickr. Cada ação com seu álbum, descrição e créditos de quem fez os cliques. Os álbuns são abertos e quem não conseguiu participar do movimento pode contemplar as fotos e mesmo que de forma remota, fazer parte das ações que ficaram perpetuadas. Assim sendo, os registros do movimento 100 em 1 dia Cuiabá democratizam a experiência das ações, pois ao visualizar as fotografias conseguimos conhecer e de alguma forma sentir que também estávamos presentes, pois a foto evidencia o sentimento de pertencimento ao lugar.

Apresentação de dança cigana na Casa Cuiabana
Foto: Suzana

Durante todo o dia os fotógrafos percorreram a cidade, armados com suas câmeras, ávidos por capturar aqueles instantes de cuidado e atenção com Cuiabá. Através de um grupo de mensagens instantâneas íamos trocando informações sobre a movimentação dos locais, quais ações estavam acontecendo, quais tinham público e qual seria a próxima a ser registrada. Durante toda a manhã permaneci no hospital psiquiátrico Adauto Botelho, onde aconteciam várias ações como pintura do mural do pátio, plantio de árvore, música e poesia. No período da tarde participei das ações de ocupação do viaduto da Avenida Fernando Correa, o viaduto foi construído para a Copa do Mundo de 2014 e as obras não foram devidamente finalizadas, há um espaço enorme na parte de baixo do viaduto, espaço fresco e sem utilidade alguma no cotidiano da cidade. As ações foram de lazer com a instalação de balanços e um churrasco, mas também foram de contestação com cartazes e lambes criticando aquele espaço.
  As imagens fotográficas participam da vulnerabilidade das coisas ao congelar o momento e imortalizar a representação, o movimento 100 em dia Cuiabá conta com belas imagens, feitas por olhares que se preocuparam com a autoestima da cidade ao fotografar as ações onde ela recebe carinho e atenção. As ações sempre serão lembradas através de fotos que preservam a memória, democratizam as experiências e podem despertar para que novas ações ocorram continuamente na cidade. Afinal, o mundo-imagem sobrevive a todos nós.

Reviver São Gonçalo, limpeza e plantio de árvores na barranca do Rio Cuiabá
Foto: Célia Soares


Referências Bibliográficas
FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume, 2008.
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 2 ed. rev. São Paulo : Ateliê Editorial, 2001.
PAULA, Dalvit Greiner. Intervenções urbanas: a arte aponta para o futuro. Revista Confluências Culturais. V.3 N.2.
RIBEIRO, Ana Clara Torres. Homens lentos, opacidades e rugosidades. Revista Redobra nº 9, 2012.
SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
Flickr com as fotografias: https://www.flickr.com/photos/140792439@N04
Site do movimento 100 em 1 dia Cuiabá: http://100em1diacuiaba.org  

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