quarta-feira, 13 de julho de 2016

Peixes e aquários: passeio errante no Mercado do Porto em Cuiabá




André Francisco Sontak de Morais


Performance Se os Tubarões fossem Homens

Foto: Jan Moura



O ensaio apresentado é resultado da disciplina de Estudos de Cultura I: Concepções e abordagens, ministrada pela professora Doutora Maria Thereza de Oliveira Azevedo, tratando da experiência vivenciada pelo 100em1dia¹, projeto que estimulou a realização de ações que, ligadas ao fazer artístico e social, ocuparam a cidade de Cuiabá no dia 3 de abril 2016.
O projeto 100em1dia é um movimento mundial, desenhado em Cuiabá pelo Cidade Possível², buscando repensar os modos de experiência urbana, tendo como força motriz a capacidade de se reconectar com a cidade através de iniciativas criativas. O projeto contou com diversas ações, dentre elas destaco a performance realizada no espaço do Mercado do Porto, “Se os Tubarões fossem Homens”.
A performance foi realizada pelo ator e artista plástico Yuri Lima Cabral, integrante do Teatro Faces³ da cidade de Primavera do Leste. O artista define o seu trabalho na programação do 100em1dia Cuiabá como performance, inspirada no texto “Se os Tubarões fossem Homens”, do encenador e poeta alemão Bertold Brecht. O trabalho consistiu na caminhada de um homem vestido de preto pelos espaços do Mercado do Porto carregando um peixe dentro de um aquário, com balões vermelhos amarrados na perna. O homem atrai a atenção dos feirantes pelos elementos extra cotidianos que carrega na caracterização e movimentação física.
Quando se estabelece a comunicação entre o emissor e o receptor na performance, a primeira experiência vivenciada é estranheza de um homem vestido de preto, no sol escaldante de Cuiabá, avançando lentamente rumo ao âmago da paisagem acelerada do Mercado do Porto. Entre as mãos, um aquário, decorado com pedras e algas sintéticas. Entre frutas, carnes e ervas, um peixe nadando tranquilo, indiferente ao mar de estímulos que o circunda. Assim, o homem leva o seu peixe para um passeio no mercado.
O passeio realizado pelo homem com o seu peixe, na manipulação do próprio corpo como gerador de sentidos, carrega a crítica feita por Brecht no texto “Se os Tubarões fossem Homens” sobre a civilização. Assim, a performance traz em sua estrutura questionamentos sobre a vida, neste trabalho em específico, questionamentos sobre a relação da experiência urbana, da própria vivência da cidade não praticada pelo peixe, que se limita ao enclausuramento do seu aquário.
Glusberg (2013) afirma que o performer se utiliza do corpo como sujeito e força motriz do ritual. Na manipulação do discurso do corpo, o performer apresenta signos, que são passivos de leitura pelo receptor, questionando e sugerindo modificações na realidade operativa imposta. Assim “as performances realizam uma crítica às situações de vida: a impostura dos dramas convencionais, o jogo de espelhos que envolve nossas atitudes e sobretudo a natureza estereotipada de nossos hábitos e ações” (GLUSBERG, 2013 p.72).
O contraste da lentidão do homem com os movimentos rápidos do peixe nos sugere disparidade de discursos. Mas a impossibilidade de livre arbítrio delimitado pelo homem através do aquário conduz o espectador ao estado de empatia, na tentativa de compreensão do signo que o peixe constrói na carga semiótica da performance.
O peixe se limita a um percurso já delineado por seu aquário, sem nenhuma opção de mudança, desvio ou retorno. O percurso programado se desfaz pelo próprio peixe, numa cena de contemplação de uma laranja. A cena que dura segundos se perpetua no imaginário do espectador pela fala de uma mulher, que surpresa sussurra que o peixe está olhando com admiração uma laranja. Neste momento é possível ver que o jogo proposto pelo performer foi identificado e também jogado.
Cristiane Esteves (2016), diretora do grupo OPOVOEMPÉ, menciona no IV Simpósio Internacional de Reflexões Cênicas Contemporâneas – Arte e Cidade sobre os três níveis de público geralmente presentes nos trabalhos que o grupo realiza: o primeiro nível de público é definido pela não percepção sobre o que está sendo proposto; o segundo nível de público estranha, mas não consegue saber o que está acontecendo; o terceiro nível de público percebe o jogo proposto e entra para jogar.
Quando o espectador troca de lugar com o peixe, reconhecendo o aquário como limitação, a performance encontra sua verdadeira força. Se colocar no lugar do peixe é entender a limitação e buscar desvios para o limite imposto pelo aquário.  
O texto de Brecht concebe um cenário no mar povoado por peixes em caixas, limitados ao cotidiano ditado por tubarões. Essas barreiras invisíveis colocadas no mar neste cenário fictício apenas transpõem uma realidade vivenciada pelos homens no cotidiano das cidades, em todos os níveis de experiência do espaço urbano.
O homem com o aquário, caminhando lentamente pelo Mercado do Porto, questionando o ritmo acelerado imposto no local, não apenas corporalmente, mas na percepção do espaço, reproduz o errante urbano citado por Jacques (2012), que experimenta a cidade de dentro, através das suas experiências itinerantes, se preocupando com práticas, ações e percursos.
Entendo o movimento dilatado do performer como projeção corporal da lentidão do errante urbano, não no sentido de rápido ou devagar, um outro tipo de lentidão, se referindo ao estado de apreensão do espaço urbano, indicando que “lentidão pode ser vista como crítica ou denúncia da aceleração contemporânea, da pressa que impossibilita a apreensão e reflexão mais vagarosa” (Jacques, 2012 p.24).
A performance Se os Tubarões fossem Homens carrega em sua estrutura uma crítica sobre a experiência limitada dos homens no espaço urbano. Se reconectar com a cidade é quebrar o aquário que nos circunda e desacelerar nossa percepção sobre a cidade, repensando os modos de experiência urbana.  

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Maria Thereza. Passeio de sombrinhas: poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade. Disponível em: <publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/magistro/article/view/2181/1007>. Acesso em: 25 jun. 2016.

GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. 2. ed. São Paulo, Perspectiva, 2009.

JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador, EDUFBA, 2012.

PEIXOTO, Fernando. Brecht: vida e obra. 3. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.




¹ O 100em1dia é um movimento mundial que acredita na potencialidade da iniciativa criativa e nas habilidades dos habitantes da cidade para melhorar os modos de viver nela. Surgiu em Bogotá em 2012 e já se espalhou pelo planeta: Kopenhagen, Toronto, Milão, Montreal, Santiago do Chile, Genebra, Cidade do Cabo entre outras. No Brasil, Rio de Janeiro e Blumenau. Cuiabá foi a 3ª cidade brasileira e a 28ª cidade do mundo a realizar o 100em1dia. Disponível em: <http://100em1diacuiaba.org/100em1dia/>. Acesso em 23 jun. 2016.

² Cidade Possível surge no programa de Pós Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, ECCO da UFMT, a partir da urgente necessidade de se pensar a cidade, pauta fundamental do debate contemporâneo, que busca encontrar outros modos de viver de se relacionar e se organizar socialmente. Disponível em: <http://cidadepossivelcuiaba.org/projeto/>. Acesso em 23 jun. 2016.

³ Disponível em: <teatrofaces.com.br>. Acesso em 24 jun. 2016.

⁴ Disponível em: <opovoempe.org>. Acesso em 24 jun. 2016.

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